O Quarto Poder

Com Moraes no comando, o TSE ficou mais alto, mais forte e mais espaçoso que o Executivo e o Judiciário

Por Augusto Nunes (*)

Professora do Grupo Escolar Domingues da Silva, minha tia Mathilde Menon gostava de atiçar a criatividade dos alunos do 4º ano com perguntas sobre temas que não faziam parte do currículo oficial. Elogiava as respostas certas com a letra de boa aluna de curso de caligrafia, corrigia verbalmente as erradas e guardava numa pasta as folhas de papel que abrigavam os mais eloquentes exemplos de imaginação e criatividade saídos da cabeça de garotos ainda na antessala da pré-adolescência.

Nenhuma resposta lhe parecia tão divertida quanto a produzida numa manhã de 1952 por um aluno de 11 anos instado a identificar os Três Poderes da República. Resposta: “Baixinho, gordinho e simpático”. “Era uma descrição sucinta de Getúlio Vargas, que voltara à Presidência”, dizia a professora. “Aquele menino cresceu ouvindo histórias que mostravam que o chefe do Estado Novo fazia e desfazia no Brasil. No dia em que fiz a pergunta, Getúlio estava de novo no Palácio do Catete. Era natural que uma criança visse naquele homem o dono de todos os poderes.”

Se estivesse viva para repetir a pergunta, Mathilde Menon concederia um 10 com louvor a quem adaptasse a resposta a estes tempos estranhos: “Careca, cara de bravo e capa preta”. A professora entenderia que o aluno se referia a Alexandre de Moraes — e até os bebês de colo, os índios das tribos isoladas da Amazônia e os napoleões de hospício admitem que ninguém no Brasil manda mais que ele. Oficialmente, Moraes é um dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal e preside o Tribunal Superior Eleitoral. No mundo real, acumula funções e papéis que o transformaram no comandante de um Quarto Poder mais alto, mais forte e mais espaçoso do que todos os outros.

Multiplicam-se evidências de que nem Moraes sabe quantos são os casos e os cidadãos brasileiros cujo destino depende da vontade e dos humores de um ministro que se promoveu a Supremo Tutor da Nação

Cinco anos depois de instalar o Inquérito das Fake News, que virou Inquérito do Fim do Mundo, gerou uma penca de filhotes, avança em sigilo com exasperante lentidão e, segundo seu parteiro, só vai acabar quando terminar, a Constituição jaz em cova rasa. Artigos, parágrafos e incisos do texto promulgado em 1988 vêm sendo substituídos pelo que dá na telha de uma bizarra entidade que atua simultaneamente como vítima, delegado, promotor, juiz, carcereiro e revisor de recursos, fora o resto. A essa imensidão de ações ilegais condenadas à anulação juntou-se há um ano a Operação Lesa Pátria, concebida para promover a “tentativa de golpe” as depredações de patrimônio público do 8 de janeiro.

Alexandre de Moraes, durante julgamento da ação que pede a inelegibilidade de Jair Bolsonaro e de Walter Braga Netto | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Nenhuma vara criminal tem tantos processos quanto a minha”, gabou-se o doutor em tudo numa entrevista recente. “São mais de 2 mil processos.” “Nenhuma é mais confusa, lenta e atrabiliária”, poderia acrescentar o mais bisonho calouro da pior faculdade de Direito. Só Moraes pode revelar o número exato de inquéritos, investigações e processos que conduz. Mas se multiplicam evidências de que nem ele sabe quantos são os casos e os cidadãos brasileiros cujo destino depende da vontade e dos humores de um ministro que se promoveu a Supremo Tutor da Nação.

Moraes assumiu tal cargo nesta semana, durante a quermesse no Senado que insistiu na fantasia rejeitada por oito em cada dez brasileiros: pela primeira vez na História, um regime democrático por muito pouco não foi derrubado por manifestantes sem chefe, sem sustentação militar e sem plano, armados com estilingues e valendo-se de um vendedor de algodão-doce para garantir o abastecimento da retaguarda. Ninguém sabe direito quem organizou a festa, a posição na plateia das autoridades presentes e a ordem de entrada em cena dos oradores.

Em eventos do gênero, costumam discursar os presidentes da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Alguém resolveu abrir o desfile com uma trinca formada pela governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (que continua qualificando de “gópi” o despejo constitucional de Dilma Rousseff), pelo procurador-geral Paulo Gonet e pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Ao empunhar o microfone, Alexandre de Moraes caprichou na pose de principal orador. Não por comandar um órgão que não foi criado para ser tribunal, não figura entre os Poderes da República sequer em republiquetas bananeiras e não tem similares na imensa maioria das nações civilizadas, mas por considerar-se o chefão do Quarto Poder.

Faixas espalhadas pelo local da festa celebravam uma Democracia Inabalada. Nem tanto, ressalvou o belicoso palavrório de palanque. Moraes acha essencial censurar as redes sociais, ameaçadas pela invasão de extremistas de direita. (No Brasil, não existe a extrema esquerda. Existem esquerdistas, que jamais propagam fake news e nunca descumprem a lei.) Explicou que teria perdido a guerra contra os golpistas de estilingue se fosse um apaziguador. Como é uma versão brasileira de Winston Churchill, combateu os nazistas da Praça dos Três Poderes com a audácia de quem pilotou um caça inglês durante a batalha da Inglaterra. Deixou para mais tarde informações sobre a descoberta da filial brasileira da Ku Klux Klan, que pretendia enforcá-lo na Praça dos Três Poderes caso tivesse seguido adiante o golpe que não existiu.

tentativa de golpe
Alexandre de Moraes, Lula e Rodrigo Pacheco, na cerimônia Democracia Inabalada, em Brasília (8/1/2024) – Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Quem bancou a quermesse dos vitoriosos de picadeiro? Pelo critério do cofre, seria justo espetar a conta no TSE. O Orçamento de 2024 contempla a Justiça Eleitoral com R$ 11,8 bilhões. A montanha de cédulas supera em R$ 1,3 bilhão o total reservado ao Ministério da Agricultura. E é dez vezes maior que a soma das verbas reservadas aos Ministérios da Igualdade Racial, das Mulheres e dos Povos Indígenas: R$ 1,2 bilhão. As cifras informam que o TSE torra fortunas também em anos sem eleição. Em 2023, por exemplo, saíram pelo ralo R$ 10,7 bilhões, dos quais R$ 6,4 bilhões foram engolidos pela folha de pagamentos.

É gastança para abalar as finanças da mais inabalada das democracias.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-199/o-quarto-poder/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.