É proibido ter paz

O 'golpe' do dia 8 de janeiro é a ficção mais ambiciosa que o STF, Lula e a esquerda nacional, com o apoio da maioria da mídia, já montaram em sua estratégia para sabotar a democracia

Por J. R. Guzzo (*)

O governo Lula, o Supremo Tribunal Federal e o seu sistema de apoio resolveram que o dia 8 de janeiro de 2023 não acabou e, no que depender deles, não vai acabar nunca. Acabaram de fazer uma comemoração oficial da data; é o mais recente dia santo do calendário brasileiro. Utilizaram a oportunidade para insistir, como vêm fazendo há um ano, que a balbúrdia ocorrida naquele dia em Brasília foi uma “tentativa de golpe de Estado”. É uma alucinação. Um ano inteiro de investigações sobre o caso, no STF e na grande delegacia de polícia em que se transformou o serviço público no Brasil, não conseguiu produzir uma única prova de golpe, ou de qualquer coisa remotamente parecida com um golpe. Mas não é só isso — mais uma invenção como as obras do PAC, a nova posição de “líder mundial” atribuída ao presidente Lula e a picanha. O “8 de janeiro” perpétuo tem um propósito muito mais destrutivo: impedir que o Brasil volte a ter um ambiente de paz política, de convívio entre ideias diferentes e de liberdade real para escolher os governantes pelo voto de todos os cidadãos.

Ninguém colocou isso de uma maneira mais clara que o ministro Alexandre de Moraes — o orador principal do comício vetado para o público e cercado por 2 mil policiais que a junta de governo Lula-STF montou para incrementar a campanha de perenização do “golpe”. O ministro disse que paz não significa “apaziguamento”, que no seu entender é uma postura “ignóbil”. Chegou, num impulso, a comparar o miserável quebra-quebra de Brasília, no qual a arma mais perigosa foi um estilingue e ninguém precisou receber um único band-aid, com a Segunda Guerra Mundial, em que morreram mais de 50 milhões de pessoas e que só acabou depois da explosão de duas bombas atômicas. Mais: igualou a atitude de rejeitar a paz no Brasil de hoje com o que fez Winston Churchill 85 anos atrás, ao recusar as propostas de pacificação com a Alemanha de Hitler. Lula, no meio de um xis-tudo quase incompreensível, disse que “não há perdão para quem atenta contra a democracia”. Uma governadora do PT repetiu a palavra de ordem da esquerda extremista: “Sem anistia”.

Como é possível achar algum ponto de contato entre a baderna de Brasília e a Alemanha Nazista — ou respeitar gente que se declara contra a ideia fundamental da compaixão humana, presente em todos os apelos por anistia? Não tem nenhum nexo, mas nada do que estão pregando é para fazer nexo. Afinal das contas, a ex-presidente do STF já disse que os tumultos do dia 8 de janeiro foram o nosso Pearl Harbour — o bombardeio do Japão que fez 2,4 mil mortos no Havaí e jogou os Estados Unidos na Segunda Guerra. Por que não permitir, nesse caso, que o seu colega se escale para o mesmo time de Churchill? O que todos eles querem é dizer que o Brasil está numa situação de vida ou morte, com golpistas de altíssima periculosidade prontos para acabar a qualquer momento com a democracia. Para impedir que façam isso, então, é preciso deixar que a junta STF-Lula faça “tudo o que for necessário” para salvar o país. Esse “tudo” inclui, mais que qualquer outra coisa, o racionamento geral da liberdade no Brasil. Democracia acima de todos. Alexandre de Moraes (e depois Lula, Janja etc.) acima de tudo.

Destruição do USS West Virginia, em 7 de dezembro de 1941, em Pearl Harbor, Havaí | Foto: Shutterstock

O fato objetivo é que um Brasil de normalidade política, com debate livre, eleições limpas e a vitória de quem teve mais votos é a última coisa que o consórcio STF-Lula quer. Para sobreviverem precisam de ilegalidade, e para manter a ilegalidade é preciso um fantasma que ameaça a todos e contra o qual é lícito fazer tudo. É o único caminho que resta: quando não existe apoio da maioria do povo, cumprimento da lei é perigo de morte. Tem sido assim desde que Alexandre de Moraes abriu, cinco anos atrás, um inquérito ilegal para combater o que chamam de “atos antidemocráticos”. É ilegal porque é perpétuo. Dá ao STF funções que a lei não lhe permite ter. Abrange todos os tipos de acusação que o ministro quer fazer — um bate-boca com ele mesmo no Aeroporto de Roma, por exemplo, ou alguém chamar o ministro da Justiça de “gordola”. Suprime direitos constitucionais dos acusados, a começar pelo direito de defesa. Ignora o processo legal, impõe censura às comunicações e toca a Polícia Federal em cima de grupos de WhatsApp. Corre em sigilo. Não há nada de parecido, em suma, em nenhuma democracia séria do mundo.

É óbvio que o consórcio STF-Lula quer que tudo continue assim; num regime efetivamente democrático, com respeito à lei, aos direitos individuais e às liberdades públicas, não há lugar para ele. Não é o seu bioma. Tem de ter um TSE que diz “missão cumprida” quando faz a diplomação de Lula como presidente da República. Tem de ter, aliás, um TSE exatamente como este, e exatamente com as mesmas urnas. Tem de ter um STF que tira Lula da cadeia onde cumpria pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro; até hoje ele não foi absolvido nem da corrupção nem da lavagem, mas está na Presidência da República porque os ministros anularam os seus processos. Não é inocente, porque nenhuma autoridade legal declarou até hoje a sua inocência. Mas “não deve nada à Justiça”, segundo sentença da Rede Globo, e não estaria onde está hoje se não fosse pelo que o STF fez — como fez questão de dizer em público um dos ministros da “suprema corte”. Seu mundo ideal é o mundo sem lei dos inquéritos de Alexandre de Moraes e dos processos, igualmente ilegais, contra os participantes do “golpe de Estado” de 8 de janeiro de 2023.

O Brasil do consórcio Lula-STF precisa de “atos antidemocráticos”, de “golpes” imaginários e de ameaças que simplesmente não existem para justificar a ilegalidade geral que o mantém de pé. Se alguma dessas coisas tivesse algum ponto de contato com a realidade dos fatos, por que cinco anos de investigação, com todo o peso e os bilhões de reais da máquina estatal, não teriam sido capazes de provar até hoje nenhum perigo minimamente sério para a democracia — nem um que seja? É simples: se não descobriram nada, é porque nunca existiu nada para ser descoberto. O “golpe” do dia 8 de janeiro é a ficção mais ambiciosa que o STF, Lula e a esquerda nacional, com o apoio da maioria da mídia, já montaram em sua estratégia básica de sabotar a democracia gritando o tempo todo “em defesa” da democracia. Já há 30 condenados a até 17 anos de cadeia por estarem presentes ao quebra-quebra, outros mil aguardam julgamento, e o ministro Moraes veio com a prodigiosa notícia de que seria enforcado pelos “golpistas” na Praça dos Três Poderes — mas de golpe mesmo não há absolutamente nada, nem vai haver, porque nunca houve golpe nenhum.

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Lula e o ministro Alexandre de Moraes, durante cerimônia de diplomação, na sede do TSE | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Lula, o STF e os jornalistas querem convencer a população de que viram, realmente, a Mula Sem-Cabeça passar por Brasília querendo derrubar o governo, acabar com os programas de “combate à fome” e transformar a Amazônia num monte de cinzas. Para evitar esses horrores, então, deve-se permitir que o ministro Moraes cuide de tudo, que o ministro Toffoli anule R$ 10 bilhões que uma empresa amiga tinha de recolher ao Erário e que o ministro Barroso continue vivendo, como ele mesmo diz, para “a história”. Tudo bem: como mice and men, nas palavras de Robert Burns, eles podem ter the best-laid plans. (Embora esses melhores planos, como lembra o poeta, frequentemente acabem não dando certo — mas isso já é uma outra história, que fica para uma outra vez.) No momento, com certeza, estão podendo fazer os planos que quiserem, sobretudo quando têm as Forças Armadas servindo como a sua empresa privada de segurança. Se quiserem nomear o Pato Donald para a próxima vaga no Supremo, por exemplo, nenhum problema — os senadores Romário, Mara Gabrilli e mais uns 50 vão achar que é uma ótima ideia. O problema é dizer que houve uma “tentativa de golpe” e pretender que alguém leve isso a sério.

É claro que ninguém leva: na última pesquisa de opinião sobre o assunto, só 20% dos entrevistados disseram que acreditam no “golpe”. Como poderia ser diferente? Caso Lula e o STF estivessem dizendo algo próximo à verdade, estaríamos diante de um dos mais prodigiosos fenômenos da história humana — o golpe “não presencial”. Pela primeira vez em 10 mil anos de vida fora das cavernas, o acusado de se beneficiar do golpe não dá o golpe enquanto está na Presidência da República e tem sob o seu controle toda a máquina do Estado, mais o comando supremo das Forças Armadas — segundo está escrito no artigo 73 da Constituição. Em vez de aproveitar isso tudo, não faz nada até o último minuto do seu mandato. Ao contrário: deixa o sucessor tomar posse tranquilamente e vai embora do país. Daí, oito dias depois de sair do governo, e estando nos Estados Unidos, resolve dar o golpe. Pode? É a primeira vez na história, também, que alguém tenta dar um golpe de Estado usando estilingues como arma. Nunca houve, igualmente, um golpe sem se declarar a vacância do cargo de presidente — e a proclamação de alguém para ocupar o lugar vago.

Jair Bolsonaro na Flórida – Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Agência Brasil

O “golpe” de Lula, do STF e da mídia não teve Exército, paraquedista ou fuzileiro naval. Tinha até vendedor de algodão-doce — mas militar, que é bom, não tinha. É extraordinário, no caso, que os golpistas jamais tivessem tido um plano de ação. Quem faria o que, como, quando, onde e por quê? O único plano do qual se falou até hoje foi o enforcamento do ministro Alexandre de Moraes, mas em matéria de prova, nada — nem 1 metro de corda. Nenhuma das pessoas acusadas do “golpe” tinha a mais remota influência política, contato com algum gato gordo do Estado ou capacidade para organizar nada. Não houve nenhuma informação sobre o que os “golpistas” iriam fazer a respeito do Congresso, dos governadores ou do próprio STF — a não ser o linchamento de Moraes que, segundo a própria PF, foi um “delírio de internet”. A propósito, foi também o primeiro golpe pelo WhatsApp a ser registrado na história universal. Mais espantoso que tudo, talvez, seja o fato de que ninguém até hoje se sentiu ameaçado por nada do que os “golpistas” fizeram.

Pelo que diz a propaganda do consórcio, o povo brasileiro foi salvo de uma ditadura. Mas por que o povo brasileiro nunca soube disso? Todos deveriam estar lotando a Avenida Paulista, a Praia de Copacabana e a Esplanada dos Ministérios para comemorar o primeiro aniversário de sua salvação. Mas não havia um único brasileiro de carne e osso na cerimônia de Lula, do PT e do STF; se alguém tivesse tentado ir, aliás, teria sido preso pela polícia que cercou o Senado e não deixou ninguém chegar perto. Sobrou, no fim das contas, só aquilo que se chama hoje de “narrativa”. É em cima dela que o consórcio vai tentar continuar governando o Brasil. Não tem nenhuma outra ideia.

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Manifestantes são retirados do Palácio do Planalto, durante o 8 de janeiro – Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-199/e-proibido-ter-paz/

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