A urna canonizada

Presidente do TSE promove a “orgulho nacional” o maior fetiche dos ministros do Supremo

Por Augusto Nunes (*)

Ex-presidentes Michel Temer, Luiz Inácio Lula da Silva, José Sarney e Dilma Rousseff na cerimônia de posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE – Foto: Antonio Augusto | Secom | TSE

Nos países em que tal cargo existe, a posse do novo gerente do órgão incumbido de organizar o processo eleitoral ocorre sem festa, não merece mais que meia dúzia de linhas de jornal nem ocupa um único segundo nos noticiários da TV. Nestes tempos estranhos, a chegada de Alexandre de Moraes ao comando do Tribunal Superior Eleitoral superou — em pompa, plateia e palavrório — mesmo mudanças na Presidência da República. Além do atual, Jair Bolsonaro, outros quatro ex-inquilinos do Palácio do Planalto — Dilma Rousseff, Lula, José Sarney e Michel Temer — ocuparam cadeiras na primeira fila. Afinado com o que há de mais ilustre no universo engravatado de Brasília, o quarteto aplaudiu de pé a discurseira que celebrou o mais recente “orgulho nacional”: a urna eletrônica.

Alexandre de Moraes chega para a cerimônia de posse no TSE ao lado da mulher, a advogada Viviane Barci de Moraes – Foto: Reprodução | TSE

A ovação chancelou o ingresso do grande fetiche dos ministros do Supremo Tribunal Federal numa categoria que abriga pouca gente e poucas coisas. A lista se restringe a figuras e lugares como Santos Dumont, o Carnaval, Pelé, o Maracanã, Ayrton Senna, as praias do Rio, Maria Esther Bueno, as Cataratas do Iguaçu, Eder Jofre, a Amazônia, a Garota de Ipanema, o samba e mais um punhado de maravilhas. A elas Moraes resolveu anexar o objeto que fez do Brasil o mais veloz dos países na modalidade não olímpica contagem de votos. “Somos 156 milhões e 454 mil e 11 eleitores aptos a votar”, informou o orador, sem revelar de onde extraiu cifra tão minuciosa.

“Estando entre as quatro maiores democracias do mundo, somos a única que apura e divulga os resultados eleitorais no mesmo dia, com agilidade, segurança, competência e transparência”, gabou-se Moraes. Só Jair Bolsonaro, seus seguidores e outros reincidentes em fake news antidemocráticas fazem de conta que ignoram a perfeição da modernidade inaugurada há 25 anos. Nesse período, apenas Bangladesh e Butão enxergaram as vantagens do invento brasileiro. O resto do planeta, composto de portadores de estrabismo tecnológico, continua desperdiçando tempo e dinheiro com apurações retardadas por métodos jurássicos.

Ex-presidentes na cerimônia de posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE – Foto: Antonio Augusto | Secom | TSE

“Que o presidente da farsa finja que não sabe o que significa essa exclusividade, vá lá”, concedeu Fernão Mesquita no artigo no site Vespeiro em que analisou o indigente palavrório de Moraes, o comportamento subalterno da manada reunida na sede do TSE e a euforia cretina da maioria dos jornalistas. “Mas a imprensa não desconfiar nem um minuto da prova concreta da esquálida estreiteza do ‘poder soberano de escolha do ‘eleitor’ de eleitos pelos outros brasileiros é de rachar de desânimo… ou de indignação.”

Em defesa da Constituição e das leis em vigor, vai tratar a socos e pontapés as leis em vigor e a Constituição

Precede esse trecho um parágrafo em que Fernão faz um desolador resumo da ópera bufa: “Que democracia tem um ‘tribunal superior eleitoral’ com quase 900 funcionários vitalícios, pagos todos os dias de todos os anos para ‘supervisionar’ o trabalho de 27 tribunais regionais eleitorais, cada um com seus milhares de servidores vitalícios, encarregados de organizar uma eleição a cada dois anos , cujas regras são as mesmas para todos os Estados e todos os municípios do país desde que Getúlio Vargas, monocraticamente como um Alexandre qualquer, matou a pau o direito de cada brasileiro decidir sua vida em seus Estado e em seu município lá em 1932, o ano em que ele mesmo inventou esse TSE?”. A existência e a regulamentação da Justiça Eleitoral estão nos artigos 118 a 121 da Constituição, o último dos quais avisa: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”.

Cerimônia de posse de Alexandre de Moraes na presidência do TSE – Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Como tal lei complementar nunca foi instituída, as principais normas que regem o Direito Eleitoral são paridas por integrantes do TSE, que fazem o que lhes dá na telha quando lidam com o cipoal de artigos, parágrafos e incisos. Também neste ano, a eleição será o que quiserem que seja, reiterou o falatório do novo presidente. Depois de louvar a liberdade de expressão, o novo presidente fez a ressalva perturbadora: “É expressamente proibido o discurso de ódio. Também seremos implacáveis contra as mentiras e fake news”. Se os inimigos do Estado de Direito ousarem duvidar, ele não hesitará: em defesa da Constituição e das leis em vigor, vai tratar a socos e pontapés as leis em vigor e a Constituição.

Yara de Abreu e o marido, o ministro Ricardo Lewandowski; Lula; Viviane Barci de Moraes e o lado do marido, o ministro Alexandre de Moraes; e Dilma Rousseff – Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Os editores das primeiras páginas se emocionaram com a patética canonização da modernidade eletrônica, consumada por Moraes a poucos metros do seu crítico mais notório. “BOLSONARO VÊ CALADO EXALTAÇÃO A URNA”, berrou a manchete da Folha de S.Paulo. A língua portuguesa agradeceria se o autor trocasse o A que precede URNA por um DA bem mais elegante. Mas lidar com o idioma sem nenhuma gentileza talvez seja o menor dos defeitos de jornalistas que torturam fatos sem sinais de remorso, vibram com a prisão ilegal de adversários do PT e enxergam um estadista sem pecados no ex-presidiário solto pelo mais dissimulado cabo eleitoral de Dilma Rousseff. O que queria o redator da manchete militante? Que Bolsonaro arrancasse o microfone das mãos do orador que lhe entregara pessoalmente o convite para a festa? O presidente da República limitou-se a deixar de aplaudi-lo. Agiu com a altiva civilidade que falta desde sempre ao presidente do TSE.

Foto: Reprodução

Previsivelmente, a concorrida missa negra celebrada em Brasília começou a expandir já no dia seguinte a sempre intensa epidemia de ativismo judicial. O desembargador Elton Leme, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, comunicou à praça que será trancafiado na cadeia mais próxima quem se atrever a apontar algum defeito numa urna. Nas disputas municipais de 2020, conforme números divulgados pelo próprio TSE, 3.381 desses cacarecos eletrônicos tiveram de ser substituídos por mau funcionamento, detectado na hora de votar por eleitores atentos. Se os pares de Elton Leme resolverem seguir o exemplo do belicoso magistrado fluminense, não haverá no pleito de outubro deste ano uma única e escassa troca de urna em todo o território brasileiro. O novo orgulho nacional acaba de ser contemplado com o status de infalível. Como o Papa. Ou como Alexandre de Moraes.

Haja arrogância.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é comentarista do Jornal da Manhã e do programa Os Pingos nos Is, ambos da Rádio Jovem Pan. Também é colunista do R7 e comentarista do Jornal da Record. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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