Fantasma da Guerra Fria ainda assombra o mundo 30 anos após o fim da URSS

Oxford Archie Brown - Foto: Reprodução

Trinta anos depois do desmantelamento da União Soviética, o fantasma de um conflito entre o Ocidente e a Rússia está vivo. A confiança mútua entre os líderes ocidentais e o russo Vladimir Putin é quase zero, diz um dos maiores especialistas do mundo em União Soviética, o professor emérito da Universidade de Oxford Archie Brown. Autor de vários livros sobre a Rússia, o mais recente “The Human Factor” (2020), que ainda não tem tradução para o português, ele afirma que americanos e russos têm responsabilidade de evitar a catástrofe de uma guerra com armas de destruição em massa e conter a devastadora mudança do clima. Na origem do estremecimento entre Moscou e Ocidente, ele afirma que a expansão da Otan foi um erro e considera a inclusão da Ucrânia na aliança uma sandice. Confira a entrevista concedida ao Valor Econômico.

Valor – Trinta anos depois, nem a Rússia nem o mundo se parecem com o que Gorbachev descreveu naquele 26 de dezembro de 1991. Analistas dizem que o risco de uma guerra acidental contra a Rússia é o mais alto em décadas. O que deu errado?

Archie Brown – Com o fim da Guerra Fria, o fim do comunismo na Europa, a dissolução do Pacto de Varsóvia e a desintegração da URSS [que aconteceram entre 1989 e 1991], era razoável supor que a Otan, uma aliança militar criada para combater o expansionismo do comunismo soviético, tinha perdido o propósito. Era de esperar que fosse dissolvida ou se tornasse moribunda. Em vez disso, foi expandida. Incluiu não só nações até então comunistas da Europa Central e do Leste, mas também partes da ex-URSS. Em vez de a Rússia ter sido acolhida na “casa europeia comum” aspirada por Mikhail Gorbachev, as fronteiras da Guerra Fria foram levadas até a sua fronteira. A insensibilidade do Ocidente aos interesses russos foi acompanhada, não por total coincidência, pelo crescimento do autoritarismo na Rússia nas últimas duas décadas, especialmente nos anos recentes. A falta de imaginação política por parte dos líderes ocidentais na era pós-soviética, bem como a falta de compromisso com normas e valores da democracia pelos líderes russos azedaram relações que alcançaram níveis de confiança e cordialidade sem precedentes nos últimos anos de Gorbachev.

Valor – Esta é uma das origens da crise na Ucrânia. Como resolvê-la e reduzir as tensões?

Brown – A questão ucraniana é especialmente perigosa. Se, como eu acredito, a expansão da Otan já foi um erro, falar em aceitar a Ucrânia na aliança é muito mais do que isso. É uma sandice. Os vínculos históricos e familiares entre os russos e ucranianos, que remontam a um milênio, e a importância estratégica da Ucrânia para a Rússia significam que a associação ucraniana a um bloco militar hostil seria intolerável para qualquer líder em Moscou, não só para Vladimir Putin. Há uma necessidade urgente de diplomacia de calma e uma desescalada das tensões. Os americanos poderiam entender as preocupações da Rússia se imaginassem um contexto em que o Pacto de Varsóvia ainda existisse e seus vizinhos, México ou Canadá, quisessem se tornar membros dessa aliança hostil. Quem ia esperar que Washington fosse sentar e esperar isso acontecer?

Valor – O desfecho da Guerra Fria poderia ter sido outro?

Brown – O fim da Guerra Fria e o do sistema comunista na URSS foram desdobramentos inequivocamente positivos, cujo crédito se deve mais a Gorbachev do que a qualquer outro líder político. No entanto, a dissolução da URSS, uma consequência inesperada dessas mudanças significativas, foi um resultado menos feliz do que um acordo voluntário que transformaria o pseudo-Estado federal soviético na união voluntária e genuinamente federal desejada por Gorbachev. Era um projeto a que ele dedicou muito tempo e energia nos seus últimos 20 meses no poder. Havia uma possibilidade real de a maioria das nações do Estado multinacional permanecerem juntas em um Estado democrático se Boris Iéltsin não tivesse garantido a “independência” russa de uma união da qual a Rússia era o principal ator político. A “união renovada” desejada por Gorbachev certamente não teria incluído Estônia, Lituânia e Letônia, mas havia uma expectativa razoável de que teria a Rússia e a Ucrânia. Quem poderá dizer se isso seria menos desejável do que sua existência como Estados separados à beira de se envolver em um conflito militar ainda mais perigoso?

Valor – O sr. acha que a desaceleração da economia soviética impôs mudanças no que diz respeito a políticas domésticas e externas?

Brown – Diz-se com frequência que a URSS foi forçada a promover reformas por não poder acompanhar economicamente os Estados Unidos, ou o Ocidente. Esse argumento cai por terra porque Gorbachev estava mais preocupado com reformas políticas fundamentais do que com reformas radicais para a economia. Somente em 1990 ele aceitou o princípio de uma economia de mercado, mas não tentou introduzi-lo nem ali porque já estava sob pressão e ataques de múltiplos oponentes, tinha perdido popularidade. E sabia que isso traria a disparada de preços de alimentos e, no curto prazo, pioraria ainda mais as coisas. Gorbachev tinha uma cabeça extraordinariamente aberta. Nos menos de sete anos em que comandou a URSS, passou de reformador comunista a transformador sistêmico, aceitando eleições contestadas e pluralismo político.

Valor – Como o senhor avalia os desdobramentos no Cazaquistão, que era visto como um país mais estável?

Brown – As autocracias cleptocráticas têm grande potencial de instabilidade. Geram um descontentamento legítimo e eventual agitação. Mas o Cazaquistão parece estar muito distante de ser um país em que as pessoas disponham de mecanismos institucionais e legais para garantir que as lideranças deem a devida satisfação à sociedade. Certamente no longo prazo, o autoritarismo é menos estável do que a democracia. Mas o longo prazo pode ser ainda mais longo em um Estado em que os líderes, como no Cazaquistão, estão prontos para usar de violência para esmagar o dissenso e onde há pouca ou nenhuma tradição democrática em que se possa sustentar.

Valor – No seu último livro, “The Human Factor”, o senhor fala do papel de Gorbachev, (Ronald) Reagan e (Margaret) Thatcher para o fim da Guerra Fria e o colapso da URSS.

Brown – O parceiro essencial para garantir o fim da Guerra Fria tinha de ser o líder da outra “superpotência” militar. Gorbachev criou boas relações pessoais, até de confiança, com Reagan, e depois com George H.W. Bush. Thatcher teve um papel surpreendentemente importante para um líder de uma potência de médio porte como o Reino Unido. Como Reagan, ela tinha fama de ser linha-dura e cética ao extremo sobre as possibilidades de mudanças positivas na URSS. Mas depois do primeiro encontro com Gorbachev decidiu que aquele era um homem “com quem podia negociar”. Ela era o líder estrangeiro preferido de Reagan, que a chamou de “alma gêmea”. Por isso, quando ela disse que Gorbachev era diferente dos outros líderes soviéticos, ele prestou atenção. Seu papel de intermediária funcionou para os dois lados.

Valor – Os três líderes tinham boa química, a despeito de valores e influências bem distintos. Isso não existe entre Putin e Joe Biden. O mundo não terá perdido uma janela de oportunidade para buscar o equilíbrio de poder?

Brown – Eles criaram uma improvável relação de confiança. Como digo no meu livro, a “confiança mútua, construída a duras penas, e posteriormente perdida, é especialmente difícil de se reconstruir”. A confiança entre os líderes do Ocidente e da Rússia agora é quase zero, especialmente entre Putin e Biden. A mentalidade de Putin é muito diferente da de Gorbachev. E não há possibilidade de um retorno a relações EUA-Rússia amistosas no curto prazo. Esses países, porém, têm interesses fundamentais em comum entre si e com o resto da humanidade. Seu tamanho e força mostram que ambos têm ainda a responsabilidade especial de contribuir para soluções. Isso significa, em primeiro lugar, evitar a catástrofe de uma guerra com armas de destruição em massa e, não menos importante, conter a devastadora mudança do clima. Por isso continua sendo importante que se entendam. Podemos deplorar muito do que acontece na Rússia hoje (sem nos esquecermos de que os Estados Unidos foram ameaçados por um golpe autoritário quando um presidente em fim de mandato se recusou a aceitar o resultado de uma eleição em que foi visivelmente derrotado). Mas esses países precisam encontrar, um passo de cada vez, formas de trabalhar pela resolução do conflito e levar a sério as atuais ameaçadas ao futuro da humanidade.

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