ENTREVISTA | Pérsio Arida: Começo do governo Lula é ‘preocupante’

Economista aponta ‘retrocessos’ na agenda ambiental e política externa e critica ataques ao BC e revisão das regras do saneamento

Pérsio Arida - Foto: Divulgação

Por Alex Ribeiro

Um dos país do Plano Real, o economista Pérsio Arida considera “preocupante” a evolução do governo Lula nos cinco primeiros meses. “Esse começo de governo é uma sequência de iniciativas e ideias que vão na contramão do que o Brasil precisa.”

A lista de restrições que Arida faz ao direcionamento econômico do novo governo é grande, da revisão do marco do saneamento aos ataques do presidente da República ao Banco Central, da volta dos subsídios ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao posicionamento na política externa.

Ele está preocupado também com o que deixou de ser feito – como adotar uma agenda na área de energias limpas para o país liderar no tema das mudanças climáticas e uma reforma do Estado para cortar desperdícios e torna-lo menos ineficiente.

Arida foi um primeiros economistas influentes a declarar apoio a Lula no segundo turno das eleições, o que ajudou o então candidato a se aproximar do eleitorado de centro. Também fez parte da equipe de transição, embora não tenha se integrado ao novo governo. “Não muda em nada a minha avaliação sobre o apoio que dei ao presidente Lula, porque foi um apoio pensando na democracia, nos direitos humanos, na agenda ambiental, muito mais do que na economia”, afirma ele, em entrevista ao Valor.

Ele diz que, neste momento, não seria uma boa ideia mudar aspectos do regime de metas de inflação, para não perder a credibilidade da política monetária. “No Brasil de hoje, é melhor não fazer nada, não mexer na meta nem no ano calendário.” Para ele, a alta indexação da economia deveria levar o país a adotar uma meta menor que 3%, não maior.

Apesar de todas as críticas, Arida ainda tem alguma esperança na mudança de rumos do governo. “Só se passaram cinco meses. Inícios de governo são sempre confusos, eu vivi isso de perto no governo Fernando Henrique”, afirma. “A ver como vai se desenvolver para frente.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como o senhor avalia esses primeiros meses do governo?

Persio Arida: Do ponto de vista econômico, a evolução dos primeiros meses é muito preocupante. Não muda em nada a minha avaliação sobre o apoio que dei ao presidente Lula, porque foi um apoio pensando na democracia, nos direitos humanos, na agenda ambiental, muito mais do que na economia. Mas esse começo de governo é uma sequência de iniciativas e ideias que vão na contramão do que o Brasil precisa: a revisão do marco do saneamento, a revisão dos critérios de voto da Eletrobras, os ataques ao Banco Central, os questionamentos sobre a lei das estatais, a volta de subsídios no BNDES, ideias como criar uma indústria de semiprocessadores no Brasil ou restaurar a indústria naval, o subsídio ao carro popular, retrocessos na agenda ambiental.

Valor: O que o senhor achou do novo arcabouço fiscal?

Arida: É bom ser uma lei complementar. O Brasil precisa desconstitucionalizar aspectos orçamentários porque as necessidades da economia mudam o tempo todo. Também é positiva a sinalização de uma preocupação do PT com a estabilidade da dívida pública a médio prazo, embora seja improvável que seja atingida ao final do governo Lula. O que mais me preocupa é o incentivo para aumentar a receita para gastar mais. O Brasil já tem uma carga fiscal muito elevada. Eu preferiria uma regra mais simples e abrangente: a soma de todos os gastos primários, incluindo transferências constitucionais, teria que permanecer constantes em termos reais por alguns anos. Foi proposta uma regra complexa. A complexidade, em si, não é problema. A regra orçamentária chilena, que foi criada em 2001, é até mais complexa do que a nossa e produziu ótimos resultados. O problema é que, no nosso caso, a tentação é sempre burlar a regra para aumentar o gasto.

Valor: Por que a estabilidade dos gastos em termos reais seria a melhor solução?

Arida: Coloca sobre o governo a preocupação de diminuir despesas obrigatórias e reavaliar as políticas de gasto. Temos uma série de gastos que, quando anunciados, no campo das intenções, sempre são meritórios, mas que terminam com uma governança e um funcionamento muito ruim. Em parte, por que o Estado brasileiro não é eficiente, em parte por captura de grupos de interesse e, muitas vezes, por inércia.

Valor: Governos de esquerda tipicamente aumentam o papel do Estado, os liberais encolhem. Dá para esperar algo diferente?

Arida: O patamar de gastos foi elevado pela PEC da Covid, PEC dos precatórios, PEC Kamikaze e, neste ano, pela PEC da Transição. Muito do efeito da PEC da Covid diminuiu, mas as outras produziram aumentos efetivos de gastos. Se estivéssemos partindo de um patamar baixo de gastos públicos, eu até entenderia a preocupação de um governo de esquerda de aumentar os gastos. Do ponto de vista dos impostos, a preocupação correta, liberal e de esquerda, é ter uma carga tributária socialmente justa. Se o governo quiser ampliar os gastos numa direção, que trate de diminuir em outra. Tem muitos desperdícios no setor público.

Valor: Haveria gordura para cortar mesmo em gastos sociais, como educação e saúde?

Arida: Garanto que tem gordura, sim. Mas não é uma coisa para macroeconomista conversar. É para uma avaliação independente dos gastos, verificar o percurso do dinheiro, se está atingindo os objetivos, como poderia ser maximizado. O setor privado faz isso o tempo todo. Você faz um programa hoje, o programa perde funcionalidade. Mas já tem uma agência, alguém que cuida, já tem a previsão orçamentária, vai por inércia.

Valor: Nem o governo Bolsonaro, que se declarava liberal, enfrentou a reforma administrativa. O que esperar do PT, com suas ligação histórica com os sindicatos?

Arida: O governo Bolsonaro foi um liberalismo de caricatura, longe de ser exemplo para qualquer coisa. Compreendo a parte ideológica, mas ideologia não deve ser confundida com imobilismo. Se tiver um debate sério sobre reforma administrativa feito pelo governo, o próprio governo vai chegar à conclusão de que é melhor para ele ter uma marca estatal mais eficiente. Tem que saber como apresenta as propostas. Se apresentar como quebra da estabilidade dos funcionários públicos, vai gerar um protesto grande. Se você apresentar como, de fato, uma forma para dar flexibilidade de carreiras e melhor remuneração para os funcionários que melhor desempenharem, a resistência é muito menor.

Valor: Na conjuntura atual, em que o Banco Central mantém juros altos para baixar a inflação, seria adequado um ajuste fiscal?

Arida: No Brasil – não estou julgando outros países – o papel anticíclico deve ser só da política monetária. O volume de gastos tem que ficar constante. A política monetária é muito mais flexível, já o comportamento dos gastos é assimétrico. Se aumentar os gastos porque, supostamente, a economia esta fraca, quero ver diminuir depois. É fácil aumentar é muito difícil reduzir.

Valor: O Brasil deveria adotar uma meta de inflação maior do que os 3% atuais?

Arida: Tem uma questão de credibilidade do regime de metas no Brasil. Se estivéssemos em uma conversa acadêmica, abstrata, eu defenderia um horizonte mais dilatado para o atendimento da meta, diferente do ano calendário, e uma redefinição do objetivo para uma espécie de “core inflation”, excluindo mudanças nos preços de combustíveis e agrícolas, ao invés da meta cheia como temos hoje. Acontece que não estamos num debate acadêmico: no Brasil de hoje, é melhor não fazer nada, não mexer na meta nem no ano calendário.

Valor: Suponha que estivéssemos num debate acadêmico. A meta ideal é mais que 3%?

Arida: Qual meta reduz o custo de um ajuste? Ou seja, se a inflação está 1% acima da meta, digamos, o desemprego para levá-la até a meta é maior com uma meta de 4,5% ou com uma meta de 3%? Num país com memória inflacionária, quanto maior a meta, maior a indexação e, portanto, maior o custo social de voltar à meta. No caso, é menor com uma meta de 3% do que com uma meta de 4,5%. Nossa meta deveria ser menor do que a dos Estados Unidos. O país que tem risco de deflação, sem memória inflacionária, tem que ter uma meta mais alta do que um país onde a memória inflacionária é muito alta e a história mostra que o desvio da inflação em relação à meta costuma ser para mais, não para menos.

Valor: O que o senhor acha das críticas que o Banco Central está sofrendo do governo?

Arida: Os ataques políticos ao Banco Central só criam mais turbulência nos mercados e não ajudam em nada a derrubar a inflação. Tecnicamente, pode se fazer a discussão se deve subir ou baixar, se o Banco Central errou. É discussão técnica, não política.

Valor: O presidente do BC, Roberto Campos Neto, disse que o presidente Lula tem todo o direito de falar sobre juros. Não faz parte do processo democrático?

Arida: Claro que o presidente Lula pode falar. Ele foi eleito. Os ministros foram indicados por ele e também podem falar o que quiserem. O que não pode é colocar uma pressão política, ameaçar a institucionalidade do Banco Central. É pernicioso ao país. Acho que o Roberto Campos tem feito um esforço de diálogo, inclusive com a grande imprensa. Notável, muito raro ver presidentes de banco central que se dispõem a um diálogo aberto, que vai para a televisão, vai ao programa Roda Viva, se dispõe a uma conversa aberta com ministros. É uma postura de abertura, democrática, rara de se ver.

Valor: O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem pregado harmonia entre as a política fiscal e a política monetária. Está faltando essa harmonia?

Arida: Esse mantra, vamos dizer assim, está na teoria econômica há muito tempo. Todo mundo acha que tem que ter harmonia. A combinação virtuosa é a política fiscal dura e a política monetária muito acomodativa. Quando verificamos no Brasil, é o oposto, certo? Tem que sair da política fiscal solta, acomodaticia, e política monetária dura, para outra situação.

Valor: O ministro Haddad se queixa que, com o juro alto, a economia cresce pouco e fica difícil cumprir as metas fiscais. A política monetária não deveria ajudar?

Arida: Se tiver uma queda muito abrupta da taxa de juros, o que vai acontecer? Gera um aumento nos preços dos ativos de Bolsa, aumento do crédito, aquecimento de economia, e a inflação sobe. Você tem que, primeiro, consolidar expectativas de inflação. O crescimento é um problema estrutural enorme. Se você perguntar como resolve, não é por medidas cíclicas, como ajuste na política monetária.

Valor: E como resolve?

Arida: O maior sucesso econômico do Brasil hoje é o agro. Por que? A taxação é baixa, até excessivamente baixa, porque a indústria é sobretaxada. Você tem vantagens comparativas de produção. E é orientado ao mercado externo. Não tem intervenção, regulamentação, estatal. Se houvesse o Instituto da Laranja ou o Instituto da Soja, como houve o Instituto do Açúcar e do Álcool e o Instituto do Café, pode ter certeza que não teria prosperado. Esse me parece ser o caminho para a indústria também. Melhor deixar de lado o protecionismo, tipo regras de conteúdo nacional, subsídios do BNDES para máquinas e equipamentos. Por outro lado, tem que investir, em saúde, educação, principalmente primeira infância, e ciência e tecnologia. Tem que ter uma agenda ambiental forte. Esse é o caminho para crescer.

Valor: Após o isolamento do Brasil no governo Bolsonaro, o presidente Lula está usando bem o seu capital político no exterior?

Arida: Tem um capital político que tem que ser preservado, é muito importante. Agora, você atrai capitais quando tem segurança jurídica, quando tem uma boa agenda, em particular de meio ambiente. Eu vi esses retrocessos no meio ambiente com enorme preocupação. O Brasil está desperdiçando a oportunidade de ser uma economia verde, de dar um exemplo para o mundo. Tem um lado preocupante também, no mundo crescentemente polarizado, de aproximações e de distanciamentos em relação ao eixo Europa-Estados Unidos, e aproximação em relação a Rússia e China. Declarações reduzindo o problema da Venezuela a uma narrativa são inaceitáveis para qualquer um comprometido com a democracia e direitos humanos.

Valor: O senhor mencionou a volta dos subsídios implícitos nos empréstimos do BNDES. Mas o banco diz que é uma linha com recursos limitados, voltada para inovação. Qual é o problema?

Arida: No mundo inteiro, inovação é “equity” [participação no capital], não é financiamento. Se você perguntar qual é o segredo do Vale do Silício, da China, Grã-Bretanha, é todo capital de risco. É errada a noção de expandir financiamento com subsídios. Tenho sempre um receio – de novo, é uma coisa brasileira – de você começar fazendo um pouco de subsídios numa área e expande para outras. Nada contra apoio à inovação. O Brasil tem que apoiar mais a inovação. A abertura da economia é crítica. Tem que baixar a tarifa para poder importar máquinas e equipamentos mais produtivos. Tem que permitir imigração, entrada de mão de obra qualificada.

Valor: Quais empresas deveriam ser privatizadas?

Arida: Os Correios são um candidato natural. Os grandes candidatos a privatização são os serviços públicos que têm monopólio. Todo monopólio é ruim para a economia, é cronicamente deficitário. A Caixa também é excelente candidata. Também deveria fechar as companhias estatais criadas. A Dilma criou uma série de companheiros estatais. O Bolsonaro não as fechou. Foi um liberalismo meio de araque, né? A empresa brasileira de rádio e televisão, a empresa dos trem-bala, não fazem sentido nenhum. Nesses casos, seria ótimo se desse para privatizar, mas infelizmente ninguém quer comprar, então tem que fechar mesmo.

Valor: O senhor falou, em entrevista anterior ao Valor, que o “xis” do problema no Brasil está nos “ismos”: patrimonialismo, populismo, corporativismo. O problema está sendo atacado?

Arida: Talvez mais importante até que a agenda econômica seja a agenda institucional. Temos tido uma enorme dificuldade de construir instituições que não sejam capturáveis por grupos de interesse. Você tem desequilíbrios na relação entre o executivo e o legislativo importantes. Temos um sistema partidário sem claras distinções programáticas, tetos de representação na Câmara e falta de “accountability” dos parlamentares com os seus eleitores, exceto pelo clientelismo.

Valor: Governo e mercado financeiro estão fazendo uma grande aposta na reforma tributária. Como o sr. avalia as ideias colocadas até agora?

Arida: É claro que seria um enorme progresso no Brasil, com o IVA único, não com o IVA dual. O IVA dual seria um “second best” [uma segunda alternativa inferior à primeira], digamos assim. O grande problema da reforma tributária é, primeiro, uma questão de encaminhamento, porque quem perde berra e quem ganha não está se manifestando. Teoricamente é uma reforma neutra do ponto de vista tributário. Mas tem um problema de fundo: você vai terminar com uma alíquota de um IVA da ordem de 25%. A alíquota de 25% só explicita que a carga tributária brasileira é muito grande. Só tem uma solução. Você tem que você tem que fazer a reforma ao longo do tempo para diminuir a carga tributária.

Valor: Como construir um consenso para aprovar a reforma?

Arida: Reformas tributárias são sempre muito difíceis em qualquer lugar do mundo. É mais difícil se você apenas disser para a indústria automobilística que vai terminar com os seus incentivos no prazo de seis anos, ou que vão acabar para a Zona Franca de Manaus, para citar dois exemplos. Diga o seguinte: vou diminuir os seus incentivos e vou diminuir a alíquota de tributação dos mais pobres, vou diminuir a alíquota do Imposto de Renda. Quando você nomeia quem vai ganhar, você cria a massa crítica a favor da reforma.

Valor: O senhor está desiludido com o governo Lula? Qual é sua expectativa daqui por diante?

Arida: Só se passaram cinco meses. Inícios de governo são sempre confusos, eu vivi isso de perto no governo Fernando Henrique. A ver como vai se desenvolver para frente. Não é que eu esteja radicalmente pessimista, ainda tem tempo para pra corrigir a rota e colocar o Brasil numa situação de crescimento elevado.

Fonte: Valor Econômico

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