Episódio da Americanas já tem repercussão em emissões de dívida

Evandro Bertho, sócio fundador da butique de investimento Nau Capital - Foto: Divulgação

A Nau Capital estava com uma emissão pronta de R$ 200 milhões em debêntures, com prazo de três anos, de uma empresa de tecnologia. Já tinha tudo acertado para uma oferta que contaria com garantia firme de um grande conglomerado financeiro. Mas, no último segundo, a instituição voltou atrás e disse que, nas condições acertadas anteriormente, não conseguiria colocar a operação de pé, conta Evandro Bertho, sócio fundador da butique de investimento. Para levar a operação adiante, o banco, um dos maiores do país, exigiu um aumento de spread de 0,75% ao ano, no que o executivo entende como um efeito do caso Americanas, que começa a ser sentido no mercado primário de dívida.

“Foi algo curioso, estava tudo assinado, mas a resposta que recebemos foi que eles não conseguiriam honrar a operação naquele custo, com a justificativa de que o evento Americanas provocou a reavaliação no risco de crédito. Não é comum um banco voltar atrás em crédito”, afirma Bertho.

“Há uma clara reprecificação de ativos descorrelacionados com o tema. Se fosse uma varejista parecida emitindo dívida, o racional faria até sentido, mas era uma empresa de tecnologia, ficou claro que os bancos estão reconsiderando seus parâmetros”.

Executivo da área de mercado de capitais de uma DTVM relata que vinha trabalhando na emissão de R$ 100 milhões de um Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI) e, ao procurar bancos interessados, uma das instituições informou que nem levaria o caso para análise do comitê de crédito.

“Era uma operação de marca forte, de acionista principal forte, mas a empresa estava em um momento um pouco mais estressado. Esse conservadorismo, que já vinha ocorrendo muito pelo ambiente de liquidez mais reduzida e taxa de juros alta, agora se acentua com o caso da Americanas”, diz.

Quando há aumento de prêmios no mercado secundário, efeito tende a se espalhar para as operações primárias.

Esse pé atrás se confirma entre executivos de bancos de investimentos que veem o mercado de dívida em “compasso de espera” para emissões no curto prazo. Por ora, a avaliação é a de que o impacto do episódio Americanas deve ser temporário. Em relação às operações já fechadas, eles afirmam que não é usual a repactuação de condições acordadas, mas que a cláusula que prevê a revisão existe, necessariamente, para ser usada nos momentos em que há mudanças mais profundas de cenário.

“Os bancos muitas vezes se comprometem com o firme dois ou até mais meses antes da operação. Um ajuste gera um mal-estar comercial muito grande, mas é uma opção”, diz uma fonte.

Já para as transações que ainda estão em fases preparatórias, a recomendação tem sido realmente para que a companhia espere até que haja maior clareza no horizonte. “Estamos dizendo para as empresas que estão pedindo propostas nesta semana que, se puderem esperar, melhor”, diz o executivo de um outro banco. No momento, a instituição está acompanhando de perto o apetite do investidor pelas emissões já em andamento e monitorando as condições dia a dia, acrescenta.

A avaliação é que deve haver apenas uma postergação das operações neste início de ano. Os executivos também veem espaço para alguma normalização nos preços após o momento de maior volatilidade. Em um período ainda fechado para ofertas de ações e com forte demanda, por exemplo, do setor de infraestrutura, a renda fixa deve continuar desempenhando o papel de suprir as necessidades de financiamentos das empresas, observa uma fonte. Para as de maior porte, o mercado externo também deve ganhar força em 2023.

Antes de a Americanas revelar inconsistências contábeis da ordem de R$ 20 bilhões na semana passada, os títulos de dívida emitidos pela companhia estavam no rol de alta qualidade, com nota “AAA”, pelas agências de classificação de risco de crédito, lembra Mauricio Valadares, executivo-chefe de investimentos da Nau.

“Todas as grandes gestoras e tesourarias de bancos tinham os papéis na carteira, afetou o secundário, com volume baixo de negociações, e o que tem sido operado vem com incremento de spread, há um viés de abertura [alta de taxas] como um todo.”

Os fundos de investimentos tiveram marcação negativa dos títulos da Americanas que têm em carteira, com a consequente desvalorização das suas cotas. As carteiras devem ter algum ajuste adicional, na margem, com as debêntures negociadas entre 10% e 11% do preço unitário par, ontem, papéis que já estavam atualizados a 25% até a véspera. O pedido de recuperação judicial foi deferido ontem.

O fiel da balança agora é o comportamento do investidor. Alguns gestores têm vendido papéis “high grade”, de melhor avaliação de crédito, no secundário para fazer caixa e atender possíveis resgates, levando ao aumento do prêmio de risco de ativos que nada têm a ver com o caso Americanas.

“Até aqui parece um evento controlado, dado o potencial destrutivo”, afirma Valadares. “O cliente que colocou dinheiro em fundo de crédito imaginava um reloginho, sem grandes traumas, e, percebendo o movimento de alguns fundos específicos, tende a buscar ativos que proporcionem retorno com menos volatilidade”.

O executivo espera que o botão de resgate seja apertado especialmente por investidores menos qualificados, um perfil mais sujeito a decisões precipitadas, que olha o resultado de curto prazo e acaba realizando um prejuízo que seria diluído com o CDI alto. “Se houver um movimento acima do previsto, novas marcações na indústria como um todo podem ser necessárias”.

Um grupo de fundos com resgate no mesmo dia ou no seguinte que Marcelo Urbano, executivo-chefe de investimentos da Augme, acompanha teve saques da ordem de R$ 1 bilhão até quarta-feira, 18, desde que o caso Americanas estourou.

“Não acho que seja um comportamento de pânico. Vai ter, sim, alguma abertura de spread de crédito, mas longe do que foi março de 2020”, diz, referindo-se ao aperto de liquidez provocado pela pandemia de covid-19.

E se há aumento de prêmios no secundário, isso escapa para as emissões primárias. “Quem entrar agora, principalmente com operações de mercado de capitais, vai pagar mais caro, mas não na magnitude do que foi em 2020”, prossegue Urbano. Ele cita que, com as incertezas derivadas do imbróglio da varejista, também os gestores vão pensar duas vezes se é uma boa decisão alocar ou preservar o caixa. A asset, que tem o fundo mais líquido com resgate em 45 dias após o pedido do investidor, tem rodado com caixa de 30%.

Os bancos de investimento têm segurado novas operações de forma preventiva, diz outro gestor. “Não adianta vir a mercado nesse clima porque [o spread] pode abrir no secundário e ficar sem referência de preço, por causa do fluxo de resgate [dos fundos]. A postura conservadora é suspender as ofertas, alguns postergam, outros encarteiram”.

No pós-pandemia, os gestores de fundos de crédito passaram a adotar postura mais conservadora na gestão do caixa e hoje têm um colchão de reserva relativamente maior, segundo Lucas Diniz, analista sênior de fundos da Guide Investimentos. “Tem resgate, sim, mas no relativo ainda é pequeno. “Os fundos carregam um porcentual de caixa maior e isso é bom para não desestabilizar o secundário, e o primário também.”

Um executivo da área de renda fixa afirma que o aumento do prêmio embutido nas emissões é algo esperado frente ao estresse observado no secundário. Ele vê um ano mais desafiador para o mercado de capitais e é possível que o patamar de captações tenha algum arrefecimento depois do recorde de emissões de dívida em 2022. Segundo a Anbima, as ofertas somaram R$ 457 bilhões, volume 6,6% maior do que em 2021 e o maior da série histórica, iniciada em 2012.

No secundário, alguns spreads vinham abrindo em 0,20%, 0,40% ao ano, principalmente em papéis mais curtos do rol de ativos “high grade”, já fechando nas negociações que saíram na quarta-feira e ontem, um dia de liquidez mais normalizada.

Fonte: Valor Econômico

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