Artur Bernardes, um herói amazônico pouco lembrado

Artur Bernardes - Foto: Reprodução

Por Juscelino Taketomi

Em setembro de 2017, o conceituado Portal do Holanda publicou um trabalho jornalístico de minha autoria em que descrevi toda a trajetória de luta do ex-presidente da República e ex-deputado federal pelo Estado de Minas Gerais, Artur da Silva Bernardes, em favor da Amazônia, esgrimando, na década de 40 do século XX, contra a criação do Instituto Internacional da Hileia Amazônica.

Na verdade, foi uma luta que dificilmente se repetiria hoje, tendo em vista barreiras e preconceitos que naturalmente brecariam as intenções de qualquer novo herói que, nascido em outra região, tomasse para si a defesa intransigente das riquezas amazônicas, e do Amazonas, em particular.

Felizmente, aqueles eram outros tempos, era outro cenário em que, para a nossa sorte, brilhou a estrela do grande e inesquecível Arthur Bernardes, nascido em Viçosa, Minas Gerais, em 8 de agosto de 1875, quarenta anos depois da Revolta da Cabanagem, no Pará. Ele impediu que, já naquela época, a Amazônia fosse loteada de modo vil.

Dos fatos

Corria o ano de 1945, Adolf Hitler estava morto e a Segunda Guerra Mundial encerrada. Em plena luta pelo monopólio estatal do petróleo em terras brasileiras, os Estados Unidos da América, a caminho de se tornarem a maior potência planetária, queriam a ferro e fogo o domínio da Amazônia.

A primeira investidura norte-americana sobre a cobiçada região teve em George Humphrey, Secretário do Tesouro, o seu instrumento estratégico. Coube a ele convencer o entreguista Paulo de Berredo Carneiro, funcionário da recém criada ONU, quanto às sutis intenções do projeto denominado Instituto Internacional da Hileia Amazônica.

A UNESCO realizou reuniões no Pará e avalizou a malfadada Convenção de Iquitos que criou o Instituto em 10 de maio de 1948, com o apoio do México, da França, do Peru e de vários outros países ditos amazônicos. O processo de internacionalização estava quase consolidado, devidamente autorizado pelo Ministério das Relações Exteriores. Faltava apenas o envio de mensagem do então presidente da República Eurico Gaspar Dutra ao Congresso Nacional. Era só o Congresso votar para tudo ficar consumado.

De acordo com relatos constantes de brilhantes trabalhos do escritor Alberto Pizarro Jacobina, do general Lávio Reis de Freitas e do ex-governador Arthur Cezar Ferreira Reis, o projeto dos EUA era uma pílula dourada e escondia seus verdadeiros objetivos através de bandeiras falaciosas que focavam a realização de pesquisas “quer nas ciências naturais, quer nas sociais, e particularmente nas relações do homem com o meio tropical”.

Dizia o famigerado projeto: “O estudo da Hileia Amazônica requer, por sua extensão e importância, a cooperação de numerosos cientistas, instituições e governos, em nome do desenvolvimento da educação, da ciência e da cultura”. E sofismava: “É necessário preparar e acelerar, por meio do estudo, o ulterior progresso dessa região e dos povos a ela vinculados, para o bem-estar da humanidade”.

A Convenção de Iquitos assim resumia suas finalidades e funções:

“Os Estados Contratados, por meio da presente Convenção, criam o Instituto Internacional da Hileia Amazônica, com o objetivo de promover, conduzir, coordenar e divulgar os estudos sobre a mencionada zona geográfica em que possuem território a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, o Equador, a França, a Grã-Bretânha, os Países Baixos, o Peru e a Venezuela”.

A Convenção, na verdade, mirava o petróleo amazônico, a cassiterita, a bauxita, o carvão de pedra, a linhita, o sal-gema, o manganês e outros preciosos minerais existentes no subsolo da riquíssima região.

A batalha patriótica

Para Bernardes, os Estados Unidos queriam lotear a Amazônia com o Instituto da Hileia – Foto: Reprodução

Quando a mensagem de Gaspar Dutra chegou ao Congresso Nacional, a Convenção recebeu imediato parecer favorável da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, mas encontrou, na figura do deputado mineiro Artur Bernardes, ex-presidente da República (1922/1926), uma inesperada e implacável resistência. Tomando para si a matéria na Comissão de Segurança, o parlamentar exigiu que fosse ouvido o Estado Maior das Forças Armadas.

Em 24 de janeiro de 1950, Bernardes ocupou a tribuna da Câmara para discursar pela primeira vez contra o intento norte-americano. Diferente dos congressistas de hoje, Bernardes, mesmo mineiro de nascimento, abraçou com fervor a defesa da Amazônia e denunciou o projeto absurdo: “A Convenção de Iquitos é inconstitucional, o Instituto da Hileia quer adquirir terras, retalhá-las a pretexto de situar operários e colonizar, trazendo e estabelecendo ali refugiados de guerra. Poderá atrair para seu serviço todos os amazônicos, que ficarão também excluídos da jurisdição brasileira e desnacionalizados”.

Bernardes finalizou dessa forma o seu contundente e histórico pronunciamento: “Estabelecido o condomínio de nações, surgirão entre elas conflitos de interesses e divergências próprias a todo o condomínio, para cuja solução terão elas de celebrar entre si outros convênios. Acabarão, então, loteando a Amazônia em zonas coloniais para cada uma delas, com a submissão das respectivas populações ao regime obsoleto e degradante das capitulações. A lei brasileira não imperará mais sobre toda aquela gente, e sim a lei daqueles países. É para esta situação que marcharemos se a Câmara aprovar a Convenção”.

O discurso de Artur Bernardes não somente mexeu com os brios e abiu os olhos do Congresso, como invadiu as redações dos jornais e agitou a opinião pública nacional. E, mais importante, acabou influenciando o parecer emitido por uma comissão de autoridades militares, ligada ao Instituto Brasileiro de Geopolítica, sobre a Convenção do Instituto da Hileia Amazônica.

O parecer praticamente condenou a “pílula dourada” norte-americana” e determinou que a organização de um Instituto Nacional da Hileia Amazônica fosse feita como parte integrante do Plano de Valorização do Amazonas, que incluía a construção das rodovias Cuiabá-Porto Velho, Aragarças-Manaus, Fortaleza-Belém, Macapá-Clevelândia-Guaporé e Manaus-Caracaraí-Boa Vista.

Após vários outros discursos firmes rechaçando a investidura estrangeira, Bernardes marcou especial presença na tribuna da Câmara em 24 de fevereiro de 1950, intimidando as forças que apoiavam a versão do Instituto da Hileia pró-EUA e encorajando a classe política que, àquela altura, já se mostrava propensa a rejeitar a matéria, seguindo o exemplo do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e de outros órgãos da sociedade que repudiaram a Convenção de Iquitos.

Os discursos de Bernardes levantaram outras vozes na Câmara, solidárias ao movimento de resistência nacionalista do deputado mineiro, valendo a pena destacar os nomes de parlamentares como Coelho Rodrigues (PI), Eusébio Rocha (SP), Campos Vergal (SP) e Paulo Bentes (RJ), todos não nascidos no Amazonas.

A pá de cal

Com riquezas fantásticas em seu ecossistema, a Amazônia sempre despertou a cobiça internacional – Foto: Divulgação

A eloquência e o destemor de Bernardes contagiaram também o Senado, onde sucessivas manifestações começaram a acontecer denunciando e rejeitando o projeto imperialista dos EUA. Àquela altura, já eram poucos os defensores do projeto no Congresso quando o deputado Artur Bernardes, em 27 de junho de 1951, promoveu histórica conferência no Clube Militar, conseguindo sacramentar a derrocada das intenções estadunidenses em relação à Amazônia. A conferência foi a pá de cal sobre o Instituto da Hileia na forma que os EUA queriam.

Eis o trecho do discurso de Bernardes que convenceu os militares a mandar definitivamente às calendas gregas o projeto famigerado: “Como haja desconhecimento, desejo esclarecer que Hileia Amazônica é o conjunto das florestas tropicais que cobrem as bacias do Rio Amazonas e de seus 14 afluentes, desde os Andes até o Oceano Atlântico. Para os efeitos da Convenção, a Amazônia não abrange apenas os Estados do Amazonas e do Pará, mas também parte dos estados do Maranhão, Mato Grosso e Goiás, por terem, no dizer dos técnicos da UNESCO, a mesma constituição, mas, em nossa opinião, por serem também petrolíferos estes últimos territórios”.

No Clube Militar, Bernardes aludiu ao  brasileiro entreguista Paulo de Berredo Carneiro, que operava na ONU a serviço do Itamarati e que serviu de emissário dos EUA junto ao Governo do Brasil acerca do projeto odiento. Para Bernardes, Berredo ignorara, para sua vergonha, célebre conselho de George Washington a seus compatriotas e que deveria calar fundo em nossas almas nos dias que correm: “Deveis ter sempre em vista que é loucura esperar de uma nação favores desinteressados de outra, e que tudo quanto uma nação recebe como favor terá de pagar mais tarde com uma parte da sua independência. Não pode haver maior erro do que esperar favores reais de uma nação a outra”.

A manifestação do Clube Militar foi decisiva para decretar a morte definitiva do Instituto da Hileia, com a força do vendaval nacionalista do deputado Artur da Silva Bernardes, o qual, após exercer a Presidência da República na década de 20 e ser tachado de reacionário pelas forças esquerdistas da época, transformou-se nos anos 40 em um dos mais importantes políticos engajados na luta pela emancipação econômica do País. Sua conferência no Clube Militar, em 1951, liquidou o projeto do Instituto da Hileia, que jamais foi à votação no Congresso Nacional.

Em 23 de março de 1955, Bernardes faleceu em sua residência, no Rio de Janeiro, mas antes do seu desencarne prefaciou o livro “Desnacionalização da Amazônia”, de autoria do desembargador e um dos maiores especialistas em direito ambiental, Osny Duarte Pereira, fazendo este comentário: “Nessa altura dos acontecimentos, procurei conhecer o que era o petróleo. Já me dedicara profundamente à questão do minério de ferro, pretendido pela Itabira Iron, e havia também estudado a questão do Instituto Internacional da Hileia Amazônica, que outra coisa não era senão o desmembramento do território nacional”.

No Amazonas, a geração atual quase nada conhece a respeito desse homem público de inestimável valor que um dia não hesitou enfrentar, de peito aberto, os trustes internacionais em defesa da nossa região. Naquele tempo, havia cidadãos brasileiros verdadeiramente dignos no Congresso e Artur Bernardes pontificou entre eles, honrando a Amazônia e o Amazonas, seu povo e seu destino, como raramente alguém honrou.

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