Por J. R. Guzzo (*)
Estabeleceu-se no Brasil, entre o primeiro e o segundo turno da eleição municipal, uma conclusão definitiva a respeito de duas coisas. A primeira é que o resultado da votação deve ser “lido” como o exato contrário do que mostram os números. Pela análise dos cientistas políticos, o grande perdedor foi Jair Bolsonaro, por dar apoio a um excesso de vencedores. A grande perdedora foi a direita, que ganhou mas está dividida, porque teve candidatos demais. A segunda é que as eleições provaram que as urnas do TSE são infalíveis; se não fossem, Lula e o PT teriam vencido.
A primeira doutrina tem a mesma importância dos analistas que a criaram — alguma coisa entre o zero e o zero absoluto. Com a segunda já é outra história. A mensagem, aí, é que continua proibido, mais do que nunca, pensar em qualquer modificação nas atuais urnas eletrônicas da “justiça eleitoral”. Os cidadãos, por este entendimento da realidade, são obrigados a respeitar, sob risco de processo penal, a determinação do STF pela qual desconfiar das urnas é uma agressão ao “Estado Democrático de Direito”.
O STF, a esquerda nacional e a maior parte da mídia exigem que você acredite numa impossibilidade física: a de que a ciência, a tecnologia e o espírito humano consigam fazer alguma melhoria mecânica para o sistema eleitoral brasileiro, daqui até o fim dos tempos. Também criaram um mandamento que não existe na Constituição Federal — o de que o Congresso Nacional não tem direito de discutir ou aprovar nenhuma lei a respeito da ordenação dos processos de voto e de apuração. Por fim, aboliram os fundamentos lógicos do sufrágio universal.
O Brasil não vai ter o mínimo de paz indispensável para a sua vida política enquanto não encarar com honestidade a questão das urnas. Não se trata apenas do mecanismo, e da ideia desconexa de que o TSE atingiu um tal estado de perfeição com os seus métodos de votação e de contagem dos votos que nenhum aprimoramento é mais possível. O que estão achando? Que as propostas de comprovante material para o voto vão levar a uma fraude gigante em favor da “direita”? Ou seria o contrário disso?
O veneno fundamental das encíclicas do STF sobre o tema, na verdade, é a contradição insolúvel entre o que eles acham e o que são, realmente, as democracias. É como se estivessem olhando para um pedaço de arame farpado, por exemplo, e dizendo como se deve fazer uma limonada. Nunca houve por parte dos ministros, desde o começo dessa história, qualquer sinal de compreensão a respeito do verdadeiro significado do conceito de voto popular — e do seu papel como instrumento da vontade da maioria.
O pecado original, aí, é a recusa do STF em admitir que uma democracia, para ser democracia, é um sistema de convívio social claramente governado pelas decisões da maior parte de seus cidadãos — e que isso tem de estar obrigatoriamente comprovado, o tempo todo. “Sem registros concretos que permitam rastreio no mundo exterior, a vontade manifesta pelos cidadãos jamais será conhecida”, escreve o procurador Felipe Gimenez, um jurista especializado na área eleitoral. É aí que está o coração do problema.
Tornou-se oficialmente “retrógrado”, no Brasil de hoje, declarar que você precisa ter uma evidência física, por mínima que seja, de que o seu voto foi registrado para o candidato que você efetivamente escolheu no teclado da urna eletrônica. Mas é essa garantia, justamente, que dá sentido ao ato de votar. Não há como haver democracia sem haver o processo concreto da deliberação coletiva — e este processo depende essencialmente do sufrágio universal, ou seja, da manifestação da vontade popular sob o fragor e a luz da praça pública.
No sistema eleitoral brasileiro não há esse fragor e nem essa luz. “Não há relação mútua”, diz Gimenez. “Não há reciprocidade. Não há universo. Não há sufrágio.” Há apenas a praça digital. “O indivíduo trava um monólogo com a urna virtual”, afirma o procurador. “Resta-lhe apenas a esperança de que será ouvido.” Não se trata, obviamente, de fazer eleição no meio da rua, nem de votar com cédula de papel e no bico de pena — isso é o que o STF diz, e é mentira. Trata-se, unicamente, de fornecer ao eleitor um comprovante material do seu voto.
O que poderia haver de errado com isso? Como o comprovante objetivo do voto poderia favorecer um candidato e prejudicar outro? De que maneira isso seria um ataque à democracia? Matéria é matéria. Onde estaria o problema de registrar a sua existência? É o exato contrário do que diz o STF — a possibilidade de verificar se o seu voto foi corretamente registrado está na essência do sistema eleitoral numa democracia de verdade. “A garantia constitucional não é apenas o direito de votar, mas de compor o sufrágio”, escreve Gimenez. Também é o que diz o artigo 14 da Constituição Federal.
“Participar do escrutínio e da sua fiscalização é inerente ao sufrágio”, afirma o procurador. “É direito de cidadania inalienável. Não pertence ao serviço eleitoral, mas ao cidadão. A urna virtual, por seu escrutínio secreto, impede o sufrágio universal.” Este é o começo, o meio e o fim do problema. O cidadão tem a obrigação de votar, mas não tem o direito de verificar para quem foi o seu voto. A “justiça eleitoral” cassou essa prerrogativa — deu a si a exclusividade do escrutínio.
O STF diz que não é assim, mas é exatamente assim. Alguém acredita que um cidadão brasileiro consiga, na vida real, conferir o voto que deu? É óbvio que o sistema eleitoral não pode ficar aberto 24 horas por dia para dar satisfação a todo e qualquer indivíduo que cisme que o seu voto foi roubado. Ninguém, por sinal, jamais pediu nada parecido — a verificação do voto tem de ser feita através de um sistema. O problema é que não há sistema nenhum — ou melhor, pode até haver, mas é um perigo recorrer a ele.
Perguntem ao ex-deputado Valdemar Costa Neto, presidente do PL, o que acontece com quem quer verificar o seu voto. Ele solicitou, pelos meios legais, uma recontagem de votos na eleição de 2022. Não houve nem a aparência de um julgamento legal: seu partido foi multado automaticamente em R$ 22 milhões e pronto. Escrutínio público? Sufrágio universal? Vontade da maioria? O STF transformou isso tudo numa piada gigante. Alega, como um fato indiscutível, a possibilidade jamais testada de que um comprovante impresso comprometa o sigilo do voto. É apenas a negação de um direito.
A questão fundamental, que não vai embora nunca, é que as eleições no Brasil se tornaram um exercício que o eleitor não entende e, sobretudo, no qual não confia. O resultado é que, enquanto não se discutir com boa-fé a reforma do presente sistema de urnas eletrônicas, continuará em aberto um processo envenenado de descrédito em relação à limpeza das eleições. O ministro Gilmar Mendes, em sua última manifestação sobre o assunto, disse que a “justiça eleitoral” é “uma invenção brasileira que deu certo”. É uma invenção brasileira, com certeza, mesmo porque não há nada parecido em qualquer democracia séria — é coisa típica de Venezuela. Mas a cada dia fica mais claro que deu errado.
- Quanto ao procurador Felipe Gimenez: se você está achando que as suas opiniões lhe trouxeram problemas sérios, acertou. Há uma representação criminal contra ele na Procuradoria-Geral da República, por “afirmações golpistas”. Não apenas querem que ele confesse um crime que não cometeu. Querem que ele reconheça um tipo penal que não existe.
(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-240/a-piada-das-urnas/