
Por Augusto Nunes (*)
Dono da Tribuna da Imprensa, deputado federal pela UDN do Rio de Janeiro, tribuno de primeira grandeza, Carlos Lacerda nem esperou a abertura da temporada de caça ao voto para deixar claro, em meados de 1955, que a disputa pela Presidência da República seria especialmente feroz. Às vésperas da convenção do Partido Social Democrático que lançaria a candidatura de Juscelino Kubitschek, o parlamentar da União Democrática Nacional avisou que o governador de Minas Gerais estava proibido de governar o Brasil. “Juscelino não pode ser candidato”, começou a sequência de ameaças encadeadas pelo grande domador de palavras. “Se for candidato, não pode ser eleito. Se for eleito, não pode tomar posse. Se for empossado, não pode governar.” Decidido a provar que Deus o poupara do sentimento do medo, Juscelino foi à luta. Vitorioso na convenção, JK representou o PSD na eleição de 3 de outubro. Com 35,6% dos votos, derrotou por uma diferença superior a cinco pontos percentuais o Marechal Juarez Távora, candidato da UDN.

O presidente eleito preparava-se para a posse quando Lacerda, apoiado por militares inconformados com a derrota do marechal Juarez, decidiu bloquear a porta de entrada do Palácio do Catete com uma invencionice de chicaneiro: só poderia governar o país o candidato que conseguisse a maioria absoluta dos votos. Como JK não passara de 50%, deveria ser realizada outra eleição. Aquele pontapé na Constituição foi a senha para a entrada em cena do doutor Heráclito Fontoura Sobral Pinto, o maior advogado da história do Brasil. O desconforto com certas ideias do candidato do PSD mantivera o combativo mineiro de Barbacena distante da campanha. Mas compreendeu que o disparo contra Juscelino ferira a Constituição. Era hora, portanto, de garantir a posse do presidente eleito. Ao lado de juristas providos de vergonha, Sobral fundou a Liga de Defesa da Legalidade. Mais brasileiros se juntaram à ofensiva, a investida lacerdista perdeu força, e Juscelino assumiu a Presidência sem sobressaltos.
Pouco depois da posse, o presidente ofereceu a Sobral uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Nenhuma surpresa. Era exemplarmente ilibada a reputação do doutor que também merecia nota 10 com louvor no quesito “notável saber jurídico”. Além do mais, a presença de um jurista de tamanho porte poderia tornar respiráveis até mesmo tribunais que lutam o tempo todo para demonstrar que o que já está péssimo sempre pode piorar. Sobral Pinto recusou a toga. De novo, nenhuma surpresa. Ao agradecimento de praxe seguiu-se a ponderação: tanto inimigos juramentados quanto aliados preteridos logo estariam enxergando na nomeação parte do pagamento pelo desempenho na batalha que havia abortado outro estupro da Constituição. Foi essencialmente para preservar a legalidade que se aliara a JK. Sobral tinha pela obediência às normas constitucionais o mesmo apreço dedicado a palavras de tal forma robustas que dispensam complementos.

O que estaria dizendo o esplêndido defensor da lei se vivesse para ver estes tempos estranhos?
Admiradores de regimes ditatoriais amam penduricalhos inúteis, constatou Sobral. “Eles vivem sonhando com uma democracia à brasileira”, ironizava. “Isso não existe. O que existe é peru à brasileira.” O amor à Justiça também orientava a aceitação de clientes. “O advogado é o primeiro juiz da causa”, ensinou. Agarrado a esse princípio, jamais tentou transformar culpados em inocentes, jamais recorreu a vigarices de rábula para livrar do castigo quem merecia cadeia. Antes de assumir a defesa de qualquer acusado ou já cumprindo pena, tratava de saber o que efetivamente ocorrera ou o que se passava no cárcere. Porque a causa não lhe pareceu defensável, recusou honorários de espantar um emir das arábias e rechaçou com frequência pedidos formulados por amigos. Católico praticante, radicalmente democrata, era avesso a golpes de Estado e tentativas de tomada do poder por métodos violentos. Mas socorreu com bravura de gladiador — sem cobrar um só centavo — o líder comunista Luís Carlos Prestes e o ativista alemão Harry Berger, presos depois da fracassada revolta comunista. Para interromper a sequência de torturas impostas a Berger por seus carcereiros, recorreu à lei de proteção aos animais. O prisioneiro já perdera a saúde e a razão.
O que estaria dizendo o esplêndido defensor da lei se vivesse para ver estes tempos estranhos? O presidente da República entrega a Alexandre de Moraes o leme do barco à deriva para ver como é, visto de longe, o país que visita uma vez por mês, presenteia a primeiríssima-dama com 12 passeios internacionais por ano, não decorou o prenome de 23 dos 37 ministros, fecha negócio com integrantes de outros Poderes em churrascos e jantares que proíbem o ingresso com celulares, insulta o antecessor de meia em meia hora, rebaixa o vice, Geraldo Alckmin, a porteiro do Gabinete Presidencial, exige que um ministro comunista emagreça uma arroba em sete dias, desanda em lives sem plateia às 8 da madrugada, diz ao Papa que Daniel Ortega agora frequenta reuniões dos Poderosos Pedófilos, traz Maduro a Brasília e manda Dilma para a China, fora o resto. Por que negar uma toga ao advogado que fez o durão Gilmar Mendes sucumbir ao pranto convulsivo sem lágrimas?


Morto em 1991, aos 98 anos, não poderia ser outro o título do documentário que resume a trajetória luminosa do singularíssimo mineiro de Barbacena: O HOMEM QUE NÃO TEM PREÇO. Quantos mais não estão à venda?, pergunto-me na semana da sagração de Cristiano Zanin. Em maio de 1969, ao visitar seu escritório no Rio para entregar-lhe um livro, enfim pude apertar a mão daquele homem de terno e colete pretos como a gravata, as meias e os sapatos, em harmonioso convívio com o branco da camisa social e dos cabelos nevados. Vestia-se sempre assim. E assim se trajava a lenda em 1983, quando empunhou o microfone no palanque do mitológico comício da Candelária. Foi o mais comovente momento da campanha das Diretas Já. “Peço silêncio”, disse Sobral antes de começar a leitura do artigo primeiro da Constituição: “Todo o poder emana do povo, e em seu nome deve ser exercido…”. O uivo da multidão completou sem palavras a frase esquecida em algum lugar do passado.
Sobral Pinto, avô de Guilherme Fiuza, combinou honradez e destemor para protagonizar por quase cem anos de vida o espetáculo da bravura sem bravatas. Essa espécie de brasileiro é tão rara quanto a ararinha-azul. Numa floresta infestada de zanins, talvez já esteja extinta.
(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.









