
Por Augusto Nunes (*)
PRESO EX-MINISTRO DE TEMER, concordaram as manchetes dos três principais diários da velha imprensa em julho de 2017, ao noticiarem a ida para a gaiola do político baiano Geddel Vieira Lima. Entre maio e novembro de 2016, ele fora ministro-chefe da Secretaria de Governo do vice que assumira a Presidência com o impeachment de Dilma Rousseff. Mas os editores das primeiras páginas sabiam que a Polícia Federal não estava no encalço do ex-integrante do primeiro escalão de Temer (demitido, aliás, tão logo se comprovou seu envolvimento em pilantragens imobiliárias denunciadas por um colega de ministério). Fora para a cadeia o Geddel que colecionara patifarias de março de 2011 a dezembro de 2013, instalado no cargo de vice-presidente de Pessoa Jurídica da Caixa Econômica Federal.

PRESO EX-BANQUEIRO DE DILMA — essa seria a manchete correta. Infiltrado no alto-comando da Caixa, Geddel atacou os cofres da instituição com tamanha gula que não demorou a estabelecer um recorde ainda não superado. Num apartamento em Salvador emprestado pelo empresário Sílvio Silveira ao amigo Lúcio Vieira Lima, irmão do larápio compulsivo, a Polícia Federal encontrou R$ 51 milhões (em cédulas novinhas em folha), além de uma pilha de dólares de bom tamanho. Foi a maior apreensão de dinheiro em espécie da história do Brasil. Espalhado por nove malas e alguns caixotes de papelão, o produto de muitos roubos, exibido em fotos e vídeos, permitiu que milhões de brasileiros vissem o tamanho da bolada à espera de quem consegue acertar sozinho na Mega-Sena. (O prêmio desta semana, por exemplo, é calculado em R$ 55 milhões. Atualizadas as cifras, equivale a um Geddel.)
Naquele Brasil esperançoso, a Operação Lava Jato e seus desdobramentos seguiam drenando o pântano irrigado pelo escândalo do Petrolão, do qual era pinçado quase diariamente algum figurão da seita que tem em Lula seu único deus. Num primeiro momento, devotos atarantados com a ofensiva anticorrupção celebraram a captura de um político que, antes da passagem pelo governo Temer, conseguira cinco mandatos de deputado federal, sempre pelo MDB, e posava de futuro dono da Bahia. Como os redatores de primeiras páginas, os militantes petistas vislumbraram a chance de, finalmente, afirmar aos berros que sobravam casos de polícia também em outros partidos. A sensação de alívio logo seria revogada pela exposição, na internet, do prontuário detalhado de Geddel — e pelas imagens do apartamento cofre.
Na semana passada, o padroeiro dos culpados bilionários presenteou outro lote de bandidos da classe executiva com anulações de provas e devoluções da dinheirama roubada do povo brasileiro
Ganhara o cargo da presidente Dilma Rousseff por ordem do amigo Lula, um entusiasta dos dotes administrativos do político baiano cuja gula por dinheiro lhe valera ainda na juventude o apelido de Jacaré. A admiração se consolidara entre 2007 e 2010, período em que Geddel foi ministro da Integração Nacional do segundo governo Lula. Ao saber que a sumidade nordestina deixaria o primeiro escalão para acabar surrado na disputa pelo governo da Bahia, Lula lamentou a perda nos comícios da campanha eleitoral de 2010. O vídeo abaixo registra um dos capítulos da cerimônia do adeus. “Você foi um cumpridor de tarefa extraordinário”, derrama-se o orador com cara de viúvo inconsolável. “E isso eu tenho ouvido não apenas da minha boca, que viajo com você, mas da companheira Dilma, que conviveu contigo.” O alvo da choradeira capricha na pose de estadista sertanejo, Lula segue em frente. “Eu disse ao Geddel outro dia: ‘É uma pena que você deixa o governo, você poderia continuar no governo pela grandeza do teu trabalho’.”
Não é pouca coisa. Mas não foi tudo. “Eu acho que o Temer deveria pegar os deputados aqui, de todos os partidos, e levar pra ver algumas obras que estão acontecendo no Nordeste brasileiro, pra saber o que que tá acontecendo no Nordeste brasileiro”, patina na redundância o palanque ambulante. Por exemplo, a transposição das águas do Rio São Francisco. “O canal da integração é uma obra que vocês vão perceber por que que Dom Pedro II queria fazer essa obra em 1847, e eu espero que até 2012 a gente conclua ela inteira. Então, Geddel, meus agradecimentos por todo o teu trabalho.” Nenhum deles poderia prever as trapaças da sorte ocorridas antes que terminasse a segunda década do século 21.
Condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Lula ficou 580 dias encarcerado em Curitiba. Foi resgatado pelo Supremo Tribunal Federal, graças à Lei do CEP inventada por Edson Fachin, e hoje é presidente da República de novo. Em outubro de 2019, Geddel foi condenado a 14 anos e 10 meses de prisão em regime fechado, por lavagem de dinheiro e associação criminosa. Em julho de 2020, o ministro Dias Toffoli, comovido com problemas de saúde do presidiário, socorreu Geddel com a concessão da “prisão domiciliar humanitária”. Somadas as temporadas na Papuda e num presídio em Salvador, foram 1.010 dias.
Hoje em liberdade, pretende disputar algum cargo depois de recuperar os direitos políticos, suspensos até 2025. Já na fase de aquecimento, sonha juntar o MDB e o PT na disputa da prefeitura da capital baiana e, quem sabe, candidatar-se a deputado federal em 2026. “Estou conseguindo sair do vale dos leprosos”, compara. “O Lula também passou pelo xilindró. Ficamos no mesmo hotel. O eleitor decide.” Enquanto ficou na cadeia, manteve a discurseira inverossímil: “Não tenho nada a ver com esse dinheiro”, continuou a recitar. “Nem sei quem é o dono desse apartamento.” As coisas pioraram quando tentou impedir que o ex-deputado Eduardo Cunha, parceiro de tramoias, fechasse um acordo de delação premiada. Só no fim de 2023 resolveu render-se. E passou a garantir que o dinheiro seria usado em mais uma tentativa de eleger-se governador da Bahia, enfim admitiu que era o dono daqueles 51 milhões. Tarde demais.
“Reconheço que o meu grave equívoco foi ter colocado o desejo de chegar ao governo acima de tudo”, diz agora. Conversa fiada. Ele sabe que seu grande erro foi negar a posse da fortuna e recusar a delação premiada, reafirma o que anda fazendo Dias Toffoli. Na semana passada, o padroeiro dos culpados bilionários presenteou outro lote de bandidos da classe executiva com anulações de provas e devoluções da dinheirama roubada do povo brasileiro. Em breve, todos os criminosos confessos terão embolsado os bilhões que se dispuseram a pagar para livrar-se da merecidíssima gaiola. Menos Geddel. Por ter jurado que nem um único e escasso centavo lhe pertencia, ficou mais de mil dias no xadrez e viu evaporar-se uma Mega-Sena acumulada. É inútil fingir que não entendeu que errou a escolha na encruzilhada. Se arrependimento matasse, Geddel Vieira Lima já seria nome de rua em alguma cidade do interior da Bahia.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-222/se-arrependimento-matasse/