O ministro sufocou o juiz

Na presidência do Supremo, Luiz Fux esqueceu o que sabia nos tempos de magistrado

Por Augusto Nunes (*)

Em setembro de 2018, quando o ministro Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal, o que seus integrantes amam chamar de Pretório Excelso passou a ser comandado, pela primeira vez na história, por um advogado duas vezes reprovado no concurso para ingresso na magistratura paulista. Surrealismo à brasileira (em dose dupla) é isso aí. O bacharel em Direito formado pela Faculdade do Largo de São Francisco não conseguiu licença para chefiar uma única e escassa comarca de São Paulo. Mas anos depois seria autorizado — graças ao medo de cadeia do presidente Lula (que o presenteou com a toga), à esperteza de candidatos a réu disfarçados de senadores (que reduzem sabatinas a chás de senhoras) e à leniência dos demais ministros (que em conversas reservadas usavam o codinome Estagiário para referir-se ao jovem colega) — a comandar por 24 meses a cúpula do Poder Judiciário.

No cargo, Dias Toffoli não perdeu nenhuma chance de confirmar que as duas bombas que levou nas tentativas de virar juiz livraram o Judiciário paulista de alguém de tal forma incapaz que é capaz de tudo. Em 13 de março de 2019, por exemplo, comunicou ao plenário que resolvera instaurar um “inquérito de ofício” — ou seja, por conta própria, sem qualquer consulta ao Ministério Público — para investigar em sigilo gente responsável por “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças que atingem a honorabilidade do STF, de seus membros e familiares”, além de outros fantasmas e fantasias. Em vez de recorrer ao sorteio de praxe, avisou que o impetuoso Alexandre de Moraes seria o relator do caso, corretamente batizado pelo ainda ministro Marco Aurélio de “inquérito do fim do mundo”. Já na largada, valeu-se de uma norma do regimento interno da Corte, que trata de crimes ocorridos nas dependências do Supremo, para atropelar o sistema acusatório brasileiro.

José Antonio Dias Toffoli, ministro do STF – Foto: Cesar Itiberê | PR

Ao escolher Alexandre de Moraes, Toffoli encontrou o parceiro perfeito. Passados mais de três anos, o aleijão inconstitucional continua fazendo estragos de bom tamanho nas normas constitucionais. Acusações distribuídas por dezenas de milhares de páginas, inacessíveis aos alvos das investigações e seus advogados, ressuscitaram a figura do preso por crime de opinião, recriaram o exilado político, reinstituíram a censura à imprensa e a estenderam à internet, fecharam blogs e sites, revogaram o direito de ampla defesa e o devido processo legal, engaiolaram a liberdade de expressão, agrediram o Legislativo, insultaram o Executivo e deixaram claro que, se os três Poderes são iguais, o Judiciário é mais igual que os outros. Fora o resto. Nesse longo e cinzento período, o único ministro a denunciar a ofensiva criminosa foi Marco Aurélio Mello. Os demais fingiram não enxergar a árvore envenenada.

Alexandre de Moraes, ministro do STF – Foto: Agencia Brasil | Marcelo Camargo

Entre os portadores de estrabismo conveniente sempre esteve Luiz Fux, que se tornou presidente quando o mandato de Toffoli terminou.

Ainda assim, não foram poucos os profissionais da esperança que viram com algum otimismo a ascensão do carioca promovido a ministro do STF por Dilma Rousseff. Desde a chegada ao plenário em 2011, Fux vivia soprando a ouvidos amigos que precisava ser cauteloso até chegar ao comando da Corte. Seria arriscado expor-se prematuramente ao grupo hegemônico liderado por Gilmar Mendes, alegava. Gilmar nunca escondeu sua contrariedade com opiniões externadas nos votos de Fux. E tampouco apreciava algumas informações exibidas pela biografia do colega.

Gilmar Mendes, ministro do STF – Foto: Geraldo Magela | Agência Senado

Uma delas: ao contrário do antecessor, o novo presidente do STF foi aprovado em dois concursos que o transformaram, primeiro, em promotor público, e depois em juiz de Direito. O desempenho nas comarcas do Rio encurtou a trajetória que incluiu escalas no Tribunal de Justiça fluminense e no Superior Tribunal de Justiça antes de desembarcá-lo no Supremo. O ex-muita coisa José Dirceu jura que Fux lhe prometeu matar no peito acusações que afligiam os envolvidos no escândalo do Mensalão. A performance no julgamento ocorrido em 2012 atesta que o ministro aplicou exemplarmente a lei.

O Supremo continuou a meter-se em territórios pertencentes aos outros Poderes

Além desses registros no currículo, trechos do discurso de posse animaram quem se esforçava para acreditar que Fux seria um bom presidente. Reveja sete deles:

    1. “O STF não detém o monopólio das respostas — nem é o legítimo oráculo — para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação.” 
    2. “Não hesitarei em tomar decisões que protejam a liberdade de expressão.” 
    3. “O Poder Judiciário não pode apropriar-se dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservada apenas aos poderes integrados por mandatários eleitos.” 
    4. “A autoridade de nós juízes repousa na crença de cada cidadão brasileiro de que as decisões judiciais decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.” 
    5. “O que se chama de ‘judicialização da política’, ou ‘ativismo judicial’, tem exposto o STF a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais quando decidem questões permeadas de desacordos morais que deveriam ter sido decididas no Parlamento.”
    6. “Não se justifica que sejamos a Corte que mais julga processos no mundo. O STF precisa ser uma Corte eminentemente constitucional.” 
    7. “Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate, autorizadas pelo Poder Judiciário, como ocorreu no Mensalão e tem ocorrido com a Lava Jato.”

Com a passagem pela presidência chegando ao fim, Fux cumprimentou-se nesta semana pelo que fez em dois anos. Quem vê as coisas como as coisas são constata que fez quase nada — e deixou de fazer tudo o que prometeu. O cortejo de vogais e consoantes acima reproduzido nunca trocou a garganta do orador pelo mundo real. O Supremo continuou a meter-se em territórios pertencentes aos outros Poderes, a legislar sobre tudo, a deliberar sobre assuntos que desconhece. Fux votou contra a anulação das condenações de Lula, mas a aprovação do parecer vigarista parido por Edson Fachin demoliu a Lava Jato. O ativismo judicial ultrapassou as fronteiras da insanidade. E foi chancelado pela frase declamada por Fux em 5 de agosto de 2021: “Quando se ataca um integrante desta Corte, se ataca a todos”.

Todos esses pecados seriam rebaixados a veniais se o supremo presidente tivesse contemplado o comportamento dos presididos com os olhos do magistrado em começo de carreira. Nessa hipótese, certamente entenderia que o aumento salarial de 18% é uma iniquidade, que os gastos do tribunal são excessivos, que a anêmica taxa de popularidade atesta a corrosão do poder moral que ampara as decisões da Corte. Mas o ministro Fux rendeu-se à turma que vê numa toga a fonte da onisciência, da onipresença e da onipotência. E preferiu esquecer o que o jovem juiz sabia.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é comentarista do Jornal da Manhã e do programa Os Pingos nos Is, ambos da Rádio Jovem Pan. Também é colunista do R7 e comentarista do Jornal da Record. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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