A liberdade proibida

Ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal - Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Por J. R. Guzzo (*)

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, baixou mais uma instrução sobre os deveres que o cidadão brasileiro deve cumprir para receber o certificado de “nada consta” exigido pelo regime político que ele próprio e os seus colegas estão impondo hoje ao Brasil. Trata-se, nesta última carta apostólica à nação, de uma proibição fundamental: não é mais permitido, segundo os termos expostos pelo ministro, discordar das decisões do Supremo. Ele ainda não diz isso com todas as letras, pontos e vírgulas, mas dá na mesma. Barroso determinou que o ato de criticar a militância política do STF é uma postura antidemocrática, já na fronteira da ilegalidade penal. Aí fica difícil. O que se condena no STF não são as preferências políticas pessoais dos ministros; são as decisões que tomam, dia após dia, e que violam as leis e a Constituição Federal do Brasil. Mas isso, segundo a verdade oficial que eles próprios criaram, é uma acusação de “ativismo político” — não tem valor nenhum, portanto. O resultado prático dessa contrafação da realidade é que fica moralmente proibido criticar o STF.

“Com frequência as pessoas chamam de ativistas as decisões que elas não gostam, mas geralmente o que elas não gostam mesmo é da Constituição, ou eventualmente da democracia”, disse Barroso em mais um desses simpósios que os ministros tanto frequentam, no Brasil e sobretudo no eixo Nova York-Paris-Lisboa. (Ali, justamente, quase só falam de política.) “Decisões que elas não gostam”? É uma avaliação que está simplesmente contra os fatos. Quando a Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo, diz que proibir as sustentações orais feitas pelos advogados no STF é uma violação do direito de defesa, isso não é acusar ninguém de “ativismo político”, mas apenas apontar uma decisão ilegal. A crítica não é porque a OAB “não gostou” da proibição. É porque ela acha que a proibição é contra a lei. Tem todo o direito de achar isso, não apenas por ter a função de assegurar as prerrogativas dos advogados — é o que lhe garante, também, a liberdade constitucional de expressão.

Não é mais permitido, segundo os termos expostos pelo ministro Barroso, discordar das decisões do Supremo – Foto: Carlos Moura/SCO/STF

É fato acima de qualquer discussão que a OAB não é uma organização de “extrema direita”. Mas é para esse purgatório que a entidade está sendo empurrada por Barroso e pelos seus manifestos — ele deixou claro, em sua última conferência, que é exatamente essa espécie de gente, a “direita”, que realmente critica o STF no Brasil de hoje. Até a OAB? É uma comprovação a mais da nuvem de irracionalidade, cada vez mais escura, que se formou sobre a vida pública brasileira pela ação do STF. A maioria dos ministros abandonou suas funções como juízes do principal tribunal de Justiça do país — em vez disso, criaram uma junta de governo que se propõe a mandar na sociedade brasileira. Não há escolha, nesse caso. Um governo ilegal tem, obrigatoriamente, de violar a lei — não pode, ao mesmo tempo, exercer poderes que não tem e sustentar que está cumprindo funções legítimas. É simples. O ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, quer julgar no STF uma agressão verbal que ele alega ter recebido no Aeroporto de Roma; na sua interpretação, o episódio está ligado aos acontecimentos do último dia 8 de janeiro, em Brasília. A partir daí, segundo os advogados de defesa, é tudo ilegal. Pergunta: por que uma posição tão legítima como essa seria “não gostar” da Constituição e da democracia?

A suposta agressão aconteceu no dia 15 de julho, cinco meses depois dos distúrbios de Brasília. O único crime pelo qual o acusado poderia ser processado é o de injúria, que prevê pena de detenção e tem de correr na Justiça comum, e não na suprema corte constitucional do país. O episódio de Brasília foi um quebra-quebra, e não uma tentativa de “golpe de Estado” — algo materialmente impossível de ter sido praticado pelos réus processados neste momento pelo STF e condenados com até 17 anos de cadeia. Não há nenhuma prova da acusação feita; os vídeos do sistema de segurança do Aeroporto de Roma, ao contrário, não revelam a prática de qualquer delito. Não existe, até agora, nem sequer uma denúncia do Ministério Público contra o acusado, mas o ministro, que vai participar do eventual julgamento, já decidiu que é um “assistente de acusação” — função que, pela lei, simplesmente não existe na fase de inquérito. Expor esses fatos, porém, é agir contra “a democracia”, segundo a última bula papal expedida pelo ministro Barroso.

Alexandre de Moraes, ministro do STF – Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Esse é apenas um caso, entre dezenas ou possivelmente centenas de outros que vêm sendo criados pelo STF nos últimos cinco anos — desde, pelo menos, o dia 14 de março de 2019, quando abriu (e nunca mais fechou) um inquérito para apurar “fake news” e uma quantidade de crimes em eterna expansão. Pode cair ali, desde então, todo e qualquer crime classificado pelo STF como “ato antidemocrático”. Tudo serve. Dizer que um ministro é “vendido”, ou coisa que o valha, deixou de ser um crime de injúria. Passou a ser tentativa de derrubar o “estado de direito” e, como tal, sujeito a julgamento no próprio STF — conforme as regras do regimento interno do tribunal, e não do processo penal estabelecido pelas leis brasileiras. Quem é condenado, ao contrário do que ocorre com qualquer criminoso, por mais hediondo que tenha sido o seu crime, não tem o direito de recorrer à instância superior. A questão agora levantada pelo presidente do STF, porém, não diz respeito apenas a uma discussão sobre legalidade. O que ele fez foi uma declaração de guerra à liberdade — e um pronunciamiento em favor da abolição do império da lei no Brasil.

O mesmo Barroso disse, no auge da campanha eleitoral do ano passado, que a quantidade de pessoas presentes nas comemorações do Sete de Setembro iria determinar “o número de fascistas no Brasil”. Isso poderia ser, em qualquer sistema racional de conduta, a declaração de um juiz imparcial?

Barroso diz que as decisões atuais do STF são um “dique” contra o que ele considera ser “o avanço do autoritarismo”. Pedir que a defesa conserve o direito à sustentação oral seria, no entendimento do ministro, uma atitude autoritária? E protestar contra a inclusão de uma conversa de WhatsApp no inquérito policial dos “atos antidemocráticos” seria “não gostar” da Constituição? É esse tipo de contrassenso flagrante que forma o núcleo duro do pensamento de Barroso. A lógica comum fica abolida em todas as questões relativas ao STF; sai o raciocínio baseado na observação dos fatos e entram a Vontade Divina, que não pode ser entendida pelo homem, e a obediência aos “deveres de Estado”, tais como eles são definidos nos despachos do tribunal. Seu presidente pode dizer, caso alguém lhe pergunte alguma coisa, que não estava falando das críticas sinceras, construtivas e bem-intencionadas, mas apenas de todas as outras. Tanto faz. Ele afirmou que a discordância em relação ao Supremo, “geralmente”, é coisa de quem não gosta da Constituição e da democracia — ficando a cargo dos ministros, pelo que se pode deduzir, dizer quais são as exceções admitidas.

É curioso que o ministro louvado pela mídia, pelo governo Lula e pelo resto da esquerda nacional por negar o ativismo político do STF seja justo ele, o presidente Barroso. O ministro disse há pouco, num evento do PCdoB: “Nós derrotamos o bolsonarismo”. Se isso não é fazer política explícita, o que poderia ser? Um magistrado do Supremo, ou de qualquer outro tipo, não está no seu cargo para derrotar um candidato legal à Presidência da República. Está lá para cumprir a Constituição do país. E os 58 milhões de cidadãos brasileiros que exerceram o seu direito de votar em Bolsonaro — também foram “derrotados” pelo STF? O mesmo Barroso disse, no auge da campanha eleitoral do ano passado, que a quantidade de pessoas presentes nas comemorações do Sete de Setembro iria determinar “o número de fascistas no Brasil”. Isso poderia ser, em qualquer sistema racional de conduta, a declaração de um juiz imparcial? O ministro afirmou ainda que “eleição não se ganha, se toma”. Depois disse que estava brincando, mas é aí que está o problema — ele falou o que falou. Não está tudo bem. Mas fica pior quando Barroso, agora, vem negar que haja atividade política no STF — e acusar quem acha isso de ser inimigo da “Constituição” e da “democracia”.

Fica mais complicado ainda quando o ministro Gilmar Mendes avisa, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que não adianta nada o Congresso aprovar uma lei que limita os poderes do STF, porque os ministros vão declarar que essa lei é ilegal. É uma declaração que diz muito, ou diz tudo, sobre o respeito que o Supremo realmente tem pelo Poder Legislativo. O fato é que o Brasil está vivendo num regime onde o governo não precisa do consentimento dos governados para governar. Precisa, apenas, declarar a si próprio como a única fonte autorizada a estabelecer direitos e deveres para a sociedade brasileira. Como diz, de novo, o ministro Barroso — estamos aqui para empurrar a História.

Roberto Barroso e Gilmar Mendes – Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-191/a-liberdade-proibida/

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