
Por Augusto Nunes (*)
Grávido de animação com a ideia de estrelar a abertura do Congresso da União Nacional dos Estudantes, o convidado de honra programou para 12 de julho de 2023 um histórico regresso ao mundo que frequentou nos tempos de aluno de Direito. Para evitar que aquilo que chamou de reencontro com as origens se confundisse com qualquer visita de jurista sessentão a algum universitário no fim dos anos 1970, Luís Roberto Barroso decidiu reduzir a distância que separa o retrato do artista quando jovem do pendurado na parede do Supremo Tribunal Federal.

Convém ressalvar que um gênio da raça não cabe em apenas duas versões. Houve o aluno condenado ao êxito. Houve o advogado com vasta clientela pronto para pagar honorários calculados em dólares por minuto. E há agora o ministro do Supremo Tribunal Federal que tudo sabe e tudo vê. Mas também tivemos o professor insuperável. Temos o palestrante que discorre sobre qualquer tema com a segurança de quem sabe quem somos, de onde viemos e para onde vamos. E logo teremos um presidente do Supremo de matar de inveja qualquer colosso da Corte Suprema ianque. Por incrível que pareça, todos são Luís Roberto Barroso.
Seja qual for o ano de fabricação, todo Barroso exibe marcas de nascença irremovíveis: não tem nenhuma dúvida sobre nada, ama ouvir a própria voz, admira o que enxerga no espelho, aguarda aplausos ao fim de cada frase e odeia a mais suave objeção. É pecado irremissível contestar a verdade revelada por um especialista em tudo. Tudo somado, é compreensível que quem conhece um Barroso se tenha surpreendido com os retoques visuais a que submeteu voluntariamente o modelo-2023 para fazer bonito no Congresso da UNE.

O ministro manteve fechado o armário das togas, esqueceu nos cabides os ternos com variações do azul-lago-norte e do cinza-brasília, pendurou no ombro um paletó sem ter conferido a cor, dobrou as mangas da camisa social azul-claro, afrouxou o nó da gravata vermelha, encarregou a cinta preta que aprisionava a calça missa-das-dez de reprimir a silhueta redesenhada por restaurantes de fina linhagem e foi à luta. Continuou visível o poço de vaidade tão vasto e profundo que poderia servir de aquário para uma baleia. As sobrancelhas pareciam desenhar com especial apuro o duplo “V” invertido. Mas ninguém adivinhou que era o “V” de “vingança”.
Agora está claro que Barroso convalesce desde novembro passado dos hematomas na alma provocados em Nova York por manifestantes brasileiros inconformados com o desempenho do Supremo Tribunal Federal. Colérico com uma interpelação que lhe pareceu insultuosa, o ministro não encontrou nada melhor que aquele paupérrimo “Perdeu, mané, não amola”. Foi muito pouco. Sitiados, os superjuízes tiveram de trocar os prazeres prometidos pela boca-livre de grosso calibre por furtivas caminhadas pelas imediações do hotel. Quem faz isso merece a mão pesada do Pretório Excelso, rudes palavrórios em juridiquês com citações em alemão, vaga em algum dos muitos inquéritos sem prazo para acabar e, claro, tornozeleira antes e depois da temporada na cadeia.
A ofensiva contra o “bolsonarismo” só serviu para comunicar ao Brasil que o próximo presidente do Supremo tem tudo para piorar o que está ruim
Golpistas, negacionistas, terraplanistas, armamentistas e demais ramificações do bolsonarismo saberiam com quem haviam mexido depois da apresentação de Barroso no mafuá da UNE. Lá não haveria “manés” de tocaia. Nem o mais beligerante fascista ousaria dar as caras no ajuntamento de comunistas dispostos a morrer para que o Estado de Direito sobreviva. Além do deputado federal Orlando Silva, acampado desde o berçário no PCdoB, escoltava Barroso o colosso maranhense Flávio Dino. Depois de fantasiar-se de juiz de Direito para não virar réu, o atual ministro da Justiça e da Segurança Pública fantasiou-se de ex-comunista para virar senador.

Homiziado no Partido Socialista Brasileiro, conseguiu o emprego que lhe permite sonhar sem perigo com a ditadura do proletariado. Faz sentido: é esse o único regime que emagrece governados com a falta da comida que engorda os governantes. Ao lado de anfitriões desse calibre, o convidado se aproximou da plateia proibida para manés como quem corre para o abraço. Foi então que Barroso ouviu a vaia. Deveria ter esquecido o encontro com as origens, encostado no ouvido o celular desligado e voltado para casa. Descobriu tarde demais que também vaidades supremas ficam em frangalhos com poucos minutos de vaias.
O fiasco de Barroso já foi detalhado por Oeste. Descontentes com posições defendidas pelo ministro, representantes de cursos ligados à enfermagem ocuparam um pequeno espaço para puni-lo com inscrições em cartazes e faixas, berreiros hostis e uma vaia de tamanho médio. O ministro achou que encerraria o assunto com duas vogais tolerantes e três consoantes conciliatórias. Não funcionou. Hora de concentrar os ataques no Inimigo Comum. Errou de novo. A ofensiva contra o “bolsonarismo” só serviu para comunicar ao Brasil que o próximo presidente do Supremo tem tudo para piorar o que está ruim.
Faz tempo que a paisagem política brasileira virou um deserto de oradores que mereçam cinco minutos de atenção. Os netos de quem ouvia Carlos Lacerda e Getúlio Vargas que se contentem com vozes à procura de uma ideia e exterminadores do plural. Por que haveria de ser diferente na selva do Judiciário? No século passado, magistrados de primeira instância queriam ser Sobral Pinto ou Nelson Hungria quando crescessem. Muitos agora acham que o silêncio na pequena comarca é mais instrutivo, útil e sensato que o berreiro das excelências togadas.
Barroso nem desconfiava, por exemplo, de que o discurso de improviso num palanque é uma forma superior de monólogo teatral. Grandes atores hipnotizam plateias com uma fala solitária de Shakespeare, mas podem não chegar ao ponto-final da oração na praça pública. Grandes tribunos decerto saberão provocar com monólogos no palco a mesma comoção despertada por improvisos no palanque. Atores se amparam no que foi criado pelo autor da peça, memorizam roteiros que não são alterados para ajustar-se às expectativas da plateia. Tribunos erguem palavra por palavra monumentos retóricos ainda por definir. Estão apenas esboçados na mente, obrigada a improvisar mudanças ditadas pelas reações do público. O país agora sabe que basta a pose de senador romano para fazer bonito na TV Justiça e alcançar o trono do Supremo. A derrota da vaidade pode apressar o fim da marcha da insensatez. No momento, os verbos nomear, demitir, prender e soltar são conjugados arbitrariamente por meia dúzia de juízes de comício. São os quatro verbos do poder, e todo o poder emana do povo. Quem é incapaz de lidar com grupelhos insatisfeitos não pode fazer o que lhe der na telha com 200 milhões de brasileiros. Democracias adultas dispensam tutores.
(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.