
Por Nuno Vasconcellos (*)
Quem acompanha os humores de Brasília afirma que há muito tempo a capital da República não vive um momento tenso como o atual. Todo dia surge um fato novo que, ao invés de ajudar a desanuviar o ambiente, torna ainda mais carregado o clima seco do Planalto Central. A semana passada, por exemplo, terminou com a notícia de que a tensão com os Estados Unidos ganhou novos ingredientes ideológicos, que sequer apareciam no radar no início desse contencioso.
Isso mesmo. Até a semana passada, os pontos de tensão entre os Estados Unidos e o Brasil se apoiavam no tratamento que a Justiça brasileira tem dado ao ex-presidente Jair Bolsonaro, usado como justificativa para as tarifas de 50% impostas aos produtos nacionais. Na semana passada, um novo ingrediente veio à cena e resultou no cancelamento dos vistos de entrada nos Estados Unidos da mulher e da filha do ministro da Saúde Alexandre Padilha (o visto do ministro não foi cancelado porque estava vencido desde o ano passado).
A explicação, desta vez, foi o papel de Padilha, que comandava a Saúde no governo Dilma Rousseff e ajudou a implementar o programa Mais Médicos. No programa, profissionais de saúde da ilha da família Castro eram mandados para trabalhar no Brasil e recebiam como salário uma pequena fração do dinheiro que Brasília mandava para a ditadura cubana. Na visão do secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, o Mais Médicos faz parte do “esquema de exploração de trabalho forçado do governo cubano”.
A rigor, a decisão do governo americano a respeito deste tema que interessa de perto a Rubio — ele próprio, um descendente de cubanos que abandonaram o país natal no início da ditadura de Fidel Castro — é apenas um ingrediente a mais numa briga que está em seus momentos iniciais. Ninguém deve se espantar se novas medidas surpreendentes forem anunciadas nos próximos dias.
O zum-zum-zum que chega de Washington dá conta de que a Casa Branca deve se manifestar brevemente contra o apoio do Brasil ao Irã e as medidas hostis a Israel — consideradas antissemitas pela Casa Branca. Outro ponto crítico o perdão aos condenados pela operação Lava-Jato, cujos processos vêm sendo anulados um atrás do outro pela mesma Justiça que, aos olhos dos Estados Unidos, persegue Bolsonaro e seus apoiadores.
São, como se vê, ingredientes que ainda não vieram à tona nesta disputa que vem tratada pelo Palácio do Planalto apenas como uma intromissão dos Estados Unidos na soberania brasileira. E que tem sido o pano de fundo do clima de tensão que, neste momento, contagia os três poderes da República.
O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do processo que deve resultar numa pena exemplar a Bolsonaro foi marcado para setembro. Visto com simpatia pelo Executivo, a expectativa em torno do julgamento tem alimentado um clima de tensão que, até onde a memória alcança, só se compara ao ambiente carregado que tomou conta de Brasília na semana da votação pelo Congresso da Emenda Dante de Oliveira, em abril de 1984.
Líderes maiúsculos
A Dante de Oliveira, como a história registra, marcou o momento em que o Legislativo assumiu o protagonismo do processo de redemocratização do país. A emenda propunha o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República e foi precedida por uma campanha de rua que, nos estertores do regime militar, mobilizou milhões de pessoas.
No calor da campanha, o clima era de festa cívica e o povo queria participar. Às vésperas da votação, e para evitar aglomerações populares na Esplanada dos Ministérios, o governo do general João Figueiredo decretou Medidas de Emergência que suspenderam o direito de reunião no Distrito Federal. A execução das medidas foi entregue ao comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, que passou a ser visto pela cidade montado em um cavalo branco e comandando as tropas que passaram a ameaçar quem ousasse furar o cerco imposto a Brasília.
Muitos àquela altura temeram que a ditadura, que já caminhava para o fim, ganhasse um novo fôlego. Pois bem, acontece que, naquele momento, o Congresso Nacional contava com líderes maiúsculos, que não se intimidaram com a pressão. Menos de um ano depois da derrota da Dante de Oliveira, o Congresso deu forma à redemocratização com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral.
Independentemente das posições que cada um ocupava no espectro político, os líderes do Legislativo naquele momento agiram como representantes da sociedade. Desafiaram o poder do Executivo e chamaram para si a responsabilidade de conduzir o processo. Ao agir assim, não apenas impediram o recrudescimento da ditadura como desenharam o modelo institucional que, para o bem ou para o mal, é o que temos nos dias de hoje.
Para infelicidade do país, porém, a crise atual encontra no Congresso parlamentares que, com honrosas exceções, parecem preocupados apenas com a execução das emendas parlamentares e ignoram o papel institucional reservado para eles pela Constituição. Liderado por políticos que, na melhor das hipóteses, não passam de representantes de si, o Legislativo dos dias de hoje tem se mostrado incapaz de tomar uma decisão que não esteja a reboque do que desejam o Executivo e o Judiciário.
Ações e omissões
Calma! Ninguém está sugerindo, aqui, que o Congresso se insurja e abra um confronto com os outros dois poderes, com os quais deve conviver em harmonia. Isso, sinceramente, resultaria num caos que ninguém em sã consciência pode desejar. Tudo o que se espera é que o Legislativo, cuja finalidade é representar os interesses da sociedade, adote em sua atuação o outro requisito que, além da harmonia, é apontado pela Constituição como essencial para o equilíbrio democrático. Esse requisito, que anda faltando na atual legislatura, é a independência.
É lamentável, para falar apenas da Câmara, que o deputado Hugo Motta (Rep./PB) tenha levado tão pouco tempo para contrariar as expectativas positivas criadas em torno de sua eleição para a presidência da Casa. Com apenas 35 anos — idade mínima que a Constituição exige para os ocupantes do cargo —, Motta é um político jovem e, ao mesmo tempo, veterano. Chegou à Câmara pela primeira vez com 21 anos e cumpre o quarto mandato. Em fevereiro passado, foi eleito para a presidência, com os votos de 444 dos 513 deputados. O posto o coloca em segundo lugar na linha de sucessão do presidente da República.
Com tais credenciais, Motta parecia pronto para pavimentar uma estrada que poderia colocá-lo diante de desafios ainda mais elevados na carreira. No entanto, por suas ações e omissões, por suas próprias escolhas e circunstâncias, a estrada que meses atrás parecia promissora parece ter se transformando num atoleiro do qual, na melhor das hipóteses, ele terá muitas dificuldades de se livrar.
Zagueiro do judiciário
A bem da verdade, o Brasil vive um momento infeliz no que diz respeito ao comando de suas duas casas legislativas. Tanto a Câmara quando o Senado — a cargo de Davi Alcolumbre (União/AP) — parecem ter sido assumidos, na atual legislatura, por políticos incapazes de entender a delicadeza do momento. Alcolumbre, por sinal, já desabafou com mais de um interlocutor que não tem conseguido, nesta segunda passagem pelo posto, pôr a Casa para funcionar na direção que gostaria.
O problema não está no Senado, mas no próprio Alcolumbre. Pressionado por senadores de oposição, que insistem em colocar em xeque a autoridade do presidente da Casa, ele parece mais interessado em atender as demandas do Executivo e do Judiciário do que em defender as prerrogativas do Legislativo.
Recentemente, ele afirmou que não pautará o projeto que pede o impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), endossado pela maioria de seus pares. Isso não acontecerá, segundo ele, nem se todos os outros 80 senadores vierem a assinar o pedido. Atenção! A ideia, aqui, não é falar da abertura do processo de impeachment de Moraes nem discutir os interesses por trás dessa proposta! O que está em debate é a posição do presidente da Casa diante dos senadores.
Ao atuar como o zagueiro encarregado de afastar da área qualquer questionamento ao Judiciário, Alcolumbre acabou chutando as canelas de todos os seus colegas. E, na opinião de muita gente, demonstrou não estar à altura da cadeira que ocupa. E quanto a Motta? Qual é o papel dele nessa história?
Bem… a diferença entre o presidente do Senado e o da Câmara é que, enquanto Alcolumbre já havia sido testado no posto, Motta chegou a ser apontado como uma grata esperança de renovação da política brasileira. Jovem, bem articulado e aparentemente disposto a dialogar com todas as forças que compõem o plenário da Casa, não demorou muito para que o prestígio que o levou à presidência começar a minguar.
Ingredientes dramáticos
A pedra de toque do prestígio de Motta e de seu desempenho na presidência da Câmara é sua postura diante dos compromissos que, para ser eleito, assumiu com uma parte expressiva dos parlamentares que o elegeram. Que compromissos eram esses? Bem… Não é segredo para ninguém que, na campanha que o conduziu à presidência da Casa, Motta se comprometeu com a maior bancada da Casa, a do Partido Liberal, a pôr para tramitar o projeto que previa a anistia para os condenados pelas manifestações do dia 8 de janeiro de 2023.
Boa parte dos dissabores que ele vem enfrentando no comando da Casa, e que minam cada vez mais o seu prestígio, se deve à falta de uma resposta convincente ao fato de não ter atendido a essa demanda. Em função disso, a relação dos deputados da oposição com o presidente da Câmara, a cada dia, ganha ingredientes mais dramáticos.
O exemplo mais recente disso foi a ocupação da Mesa Diretora por deputados da oposição na semana retrasada. A desculpa para a ocupação, como se sabe, foi a ordem de prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, expedida pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. O episódio — já discutido por esta coluna no domingo passado — continua rendendo frutos. A crise, como se sabe, foi resolvida não por Motta, mas pela intervenção de seu antecessor, o deputado Arthur Lira (PP/AL).
Foi Lira quem negociou a saída dos sediciosos em troca da promessa de votação da anistia. Além disso, também seria debatido o projeto que tira do STF o foro para o julgamento das ações que envolvam parlamentares. Diante do rigor que a Suprema Corte tem demonstrado nas causas que envolvem os partidários de Bolsonaro, eles preferem ter seus casos analisados pelas instâncias inferiores da Justiça.
Não se trata (é bom deixar isso claro) de discutir se os parlamentares da oposição estão certos ou errados em se considerar perseguidos pelo STF. O que interessa é discutir o comportamento de Hugo Motta diante das reivindicações endereçadas a ele. E a reação que ele teve após a desocupação da mesa tem sido a pior possível.
Deixando transparecer melindre diante da atuação de Lira diante do problema que ele não teve autoridade para resolver, Motta quis mostrar que é ele quem manda na Câmara e desautorizou as negociações feitas por seu antecessor. Mandou dizer que não trataria da anistia nem de qualquer projeto de interesse da oposição. E mais: elaborou uma denúncia com os nomes dos 17 principais envolvidos na ocupação da mesa e ordenou que o Conselho de Ética punisse cada um deles com suspensões que podem chegar a seis meses.
Em tempo: da lista de Motta ao Conselho de Ética não consta a deputada Camila Jara (PT/MS). Ela foi flagrada agredindo o deputado Nikolas Ferreira (PL/MG) com um soco nas partes baixas. Já pensou o fuzuê que aconteceria se tivesse sido o contrário?
Moraes, Chávez e Bukelle
Os deputados da situação, claro, aplaudiram o rigor anunciado por Motta e acham a suspensão até suave. Teve gente que chegou a falar em cassação. Seja como for, o pedido de punição, da forma com que foi anunciado, não passou de mais uma demonstração da inabilidade e da falta de autoridade do presidente da Casa. Tanto assim que, as 48 horas exigidas pelo presidente para punir os que ousaram por sua autoridade em xeque foram estendidas para 45 dias para análise dos processos…
Será que Motta e os deputados governistas que pedem as cabeças dos adversários pararam para pensar nas consequências de uma punição em massa aos 17 deputados mais atuantes da oposição? Será que eles não se deram conta das repercussões que uma medida como essa pode ter no exterior neste momento em que o Brasil vem sendo apontado por jornais do mundo como um país autoritário, a caminho de uma ditadura?
O ex-primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates criticou a prisão preventiva de Jair Bolsonaro, que considerou “inquisitorial”. E advertiu que, ao aplaudir a medida, a esquerda está criando um ícone. Atenção: a crítica à prisão não vem da extrema-direita! Sócrates é socialista e sempre se mostrou simpático aos governos petistas. É bom, portanto, parar para analisar o que ele tem a dizer.
Não é só! Será que nenhum deles tomou conhecimento do artigo assinado pela colunista Mary Anastasia O’Grady, do influente diário Wall Street Journal? O texto compara Alexandre de Moraes a caudilhos que, segundo o jornal, colocam a Justiça a serviço de projetos políticos autoritários. Como o venezuelano Hugo Chávez e o salvadorenho Nayib Bukele. Será que, ao tirar os oposicionistas de cena, o Legislativo brasileiro não se tornaria alvo das mesmas críticas feitas ao Judiciário em vários países do mundo?
Ainda tem mais! Será que Motta, num Congresso esvaziado pela ausência desses 17 deputados, se acha capaz de lidar com a reação popular que certamente se seguirá à condenação de Bolsonaro? Ou será que, assim como Figueiredo confiou que a energia de Newton Cruz seria capaz de conter as reivindicações da sociedade durante as medidas de emergência, Motta e os deputados governistas acham que as ameaças do STF aos atos “antidemocráticos” e as penas rigorosas aplicadas a quem participou dos atos de 8 de janeiro serão suficientes para conter as reações da sociedade?
Só o tempo dirá. Mas, seja como for, já passou da hora de surgir alguém disposto a distensionar o ambiente. Mesmo porque, o caminho atual não está sendo tão bom para ninguém. Nem mesmo para o governo, como pareceu no primeiro momento.
Pesquisas de opinião que começaram a circular nos bastidores na semana passada mostram que a popularidade do presidente Lula, que ganhou impulso nos momentos iniciais do contencioso com os Estados Unidos, já está perdendo o fôlego. Pesquisas de tracking mostram que a reação inflamada ao tarifaço de Trump já deu a Lula os ganhos que poderia ter dado — e esses ganhos não foram suficientes para garantir o salto de popularidade que ele buscava com a retórica antiamericana.
Alheio aos fatos, Motta parece disposto a varrer a crise para debaixo do tapete. Na semana passada, elegeu as prioridades legislativas para o segundo semestre. A lista traz apenas temas de interesse do Executivo — o que apenas reforça a falta de independência do Legislativo. Um dos temas são as medidas contrárias à “adultização” das crianças nas redes sociais — vista pela oposição como apenas mais um passo no esforço do governo de “regulamentar” (ou seja, “censurar”) a internet.
Outra prioridade é o projeto que prevê ajuda financeira às empresas exportadoras atingidas pelo tarifaço americano. Se esses temas serão suficientes ou não para reduzir as tensões é algo que dependerá dos próximos movimentos sobre o tabuleiro. E de decisões que serão tomadas não só em Brasília, mas, principalmente, em Washington.
(*) Emrepsário luso-brasileiro











