Um regime doente

Poucas vezes a criminalização das opiniões contrárias foi tão neurótica como está sendo agora com os debates sobre o aborto

Ilustração: Shutterstock

Por J. R. Guzzo (*)

As classes que mandam hoje no debate público nacional, num arco que vai do Supremo Tribunal Federal aos animadores de auditório politicamente corretos, querem criar uma sociedade de boçais no Brasil. Descrevem a si próprios como democratas, civilizados e “progressistas”. Estão sendo, cada vez mais, gendarmes de uma ordem pública na qual a maior ofensa é ter uma opinião diferente da que eles têm — a única que, na sua visão de mundo, deveria ser legalmente permitida no país. Qualquer outra, sobre qualquer assunto, é de extrema direita, contra a democracia e acusada de levar a humanidade de volta ao Tempo das Cavernas. Por esse entendimento, fica proibido discordar. Fica proibido propor ideias próprias. Fica proibido pensar. O que pretendem na prática é eliminar, em nome do “processo civilizatório”, justamente um dos princípios fundamentais para o avanço da civilização humana — o da livre circulação de ideias e a convicção de que pode haver mais de um ponto de vista sobre a mesma coisa.

O Judiciário supremo, a maior parte da mídia e as classes culturais estão convencidos, como o presidente Lula e a esquerda em geral, de que só as ideias que consideram acertadas têm o direito de entrar no debate público. As que não levam o seu certificado de aprovação, e sobretudo as que são contra as suas, são tratadas como manifestações de delinquência social, política e moral — são “fascistas” e seus portadores deveriam responder a processo penal se disserem o que pensam. Vale para tudo, da ideia de que não houve “golpe de Estado” em 8 de janeiro de 2023 até a sugestão de que as urnas eletrônicas do TSE podem estar sujeitas a melhorias técnicas. Mas poucas vezes a criminalização das opiniões contrárias foi tão neurótica como está sendo agora com os debates sobre o aborto. A ideologia oficial, simplesmente, decidiu que o cidadão brasileiro não tem o direito civil de ser contra o aborto — e não pode, nem mesmo, propor que haja algum limite temporal para a supressão do feto.

Foto oficial do STF, com a composição atual completa – Foto: Montagem Revista Oeste/Fellipe Sampaio /SCO/STF

É pura e grosseira repressão do pensamento, direto na veia. A Câmara dos Deputados quer urgência para a discussão e votação de um projeto que limita até os cinco meses de gravidez a execução do aborto legal — por qualquer causa. É um momento em que o feto já está com todos os seus órgãos e membros formados. Os seus pulmões respiram, e o coração está batendo. Os sistemas circulatório, digestivo e urinário funcionam como os de um ser vivo. O sexo já está definido. O bebê se movimenta dentro da mãe, é capaz de ouvir os sons exteriores e reage a estímulos da luz. Os defensores de um limite de calendário acreditam que esse é o ponto máximo a que se pode chegar, em qualquer caso de aborto — como recomenda, por sinal, o Conselho Federal de Medicina, que tem a função oficial de estabelecer regras sobre questões de saúde. A recomendação foi declarada “inconstitucional” pelo ministro Alexandre de Moraes. Diante disso, a Câmara decidiu debater um projeto de lei sobre o assunto.

Que crime poderia haver nisso? Há pessoas a favor do aborto. Há pessoas que são contra. Há as que propõem um prazo máximo para a sua realização — neste caso, cinco meses de gravidez. Todas têm razões legítimas para pensar como pensam; ninguém pode ser impedido de defender uma posição ou a outra. A única maneira de estabelecer uma regra legal para resolver esse tipo de diferença, numa democracia, é adotar a vontade da maioria. A única maneira real de descobrir a vontade da maioria é entregar o assunto à deliberação do Congresso Nacional — e o Congresso é a única instituição que está autorizada pela Constituição a representar o povo brasileiro. Esse procedimento elementar da democracia, porém, está sendo tratado como um escândalo sem precedentes pelo Centro Nacional de Enfrentamento à Opinião Livre. No caso da discussão sobre os limites de tempo para o aborto, na verdade, a repressão vem em dose dupla. Não apenas é negado o direito do cidadão de ser a favor do prazo. É negado, também, o direito que o Congresso tem de fazer leis sobre a questão.

Ilustração: Shutterstock

É uma contrafação em estado bruto. Os partidos da esquerda, os “formadores de opinião” e as almas que se consideram esclarecidas transformaram o projeto numa discussão sobre o estupro. Como a proposta equipara ao crime de homicídio todo aborto feito nessas condições, incluindo os que são originados por estupro, o pensamento único começou a dizer que a lei persegue as mulheres estupradas. É mentira. O projeto pune o aborto após 22 semanas de gravidez; não absolve o estupro, nem atenua as suas penas. A punição, de 20 anos de cadeia, se baseia na convicção de que o feto, nesse estágio de desenvolvimento, é um ser vivo. O Código Penal Brasileiro, por sua vez, define no artigo 121 o que é o crime de homicídio: “Matar alguém”. Os autores da lei acham que o feto de cinco meses é “alguém”; eliminar sua vida, nesse raciocínio, é cometer um assassinato, que tem punição maior que a do estupro. Os estupradores continuam sendo punidos pelo crime de estupro. Os responsáveis pelo aborto passam a ser punidos pelo crime de assassinato.

Lula e a Frente Pró-Aborto estão dizendo, horrorizados, que “a mulher vai ser castigada com uma pena maior que a do estuprador”. Não é “a mulher”. É quem praticou um crime de homicídio, que segundo o Código Penal é mais grave que o de estupro. A visão dos que propõem a lei está certa ou errada? Já existe vida aos cinco meses de gravidez, ou a vida só começa com o parto? Se não é fixado um prazo máximo, o aborto pode ser feito, digamos, aos oito meses? Tudo isso pode estar em debate, pelo tempo que for necessário. O incompreensível é decretar que o Congresso Nacional não tem o direito de aprovar, em votação aberta no plenário, a lei que julgar mais acertada sobre a questão. Lula, por exemplo, acha que o projeto é uma “insanidade”. O grosso da mídia diz e escreve que é um ato de barbárie — ou uma proposta fascista, ou bolsonarista, ou de fanáticos religiosos. O presidente do Senado se escandaliza com bonecos que os senadores levam à tribuna para representar fetos. Tudo bem: basta, para evitar essa calamidade, fazer com que a proposta seja rejeitada no Congresso.

O problema, como em tantas outras votações na Câmara e no Senado, é um só: o governo, o STF e os artistas da Globo têm medo de perder. Têm medo, na verdade, das preferências, valores e decisões da maioria do povo brasileiro. O resultado é a formação desse corpo de carabineiros do pensamento que está aí, cada vez mais agressivo na ambição de racionar as liberdades no Brasil — de expressão, de crença, de opinião política e de pensar diferente deles. É um clima de vale-tudo, que leva os fatos para o pelotão de fuzilamento e tem o apoio fechado das facções que governam o Brasil e decretam o que é o bem e o mal. “Não à gravidez infantil”, diz uma das ordens de marcha mais típicas da campanha que se levantou contra o projeto. “Crianças estão sendo obrigadas a serem mães… Esse projeto absurdo obriga meninas e mulheres vítimas de estupro a levar a gravidez resultante desse crime adiante. Caso contrário, a pena é similar a um crime de homicídio. Mas isso não vai ser votado… É um crime contra todas as mulheres.” Nenhuma criança será presa por abortar; é proibido por lei prender menores de idade. Mas e daí?

Esse desvio constante das noções básicas da democracia está criando um país ruim. Há uma clara deficiência de ordem moral num mundo político em que o aparelho do Estado interdita o debate entre os cidadãos

Este é o tom — do presidente até o último miliciano dos esquadrões de fake news a serviço do governo, dentro ou fora do Palácio do Planalto. A falsificação dos fatos segue o roteiro de sempre, mas a fórmula do veneno está nesse “não vai ser votado”. Faz parte da doutrina central do regime em vigor no Brasil de hoje: se não aprovar as leis autorizadas por Lula, o STF e o Jornal Nacional, o Congresso está sendo de “extrema direita” e agindo “contra a democracia”. Não pode fazer regras para a demarcação de reservas indígenas. Não pode legislar sobre consumo de drogas. Não pode abolir o imposto sindical, nem limitar as nomeações de políticos amigos para a diretoria das empresas estatais. Não pode estabelecer mandatos para os ministros do STF, nem colocar limites efetivos à sua ação. Não admitem, agora, que o Congresso discuta e vote a proibição do aborto legal depois dos cinco meses de gravidez. O ministro Alexandre de Moraes, que não tem o direito de aprovar lei nenhuma, pode decidir que não há prazo. O Congresso, que é o único que tem direito de aprovar leis, não pode.

Esse desvio constante das noções básicas da democracia está criando um país ruim. Há uma clara deficiência de ordem moral num mundo político em que o aparelho do Estado interdita o debate entre os cidadãos. Obviamente, é uma anomalia que não vem sozinha — faz parte de toda uma construção totalitária. O pacote é extenso. Inclui, acima de tudo, uma casta de donos da razão que autoriza ou proíbe o cidadão de pensar — permitem o que acham certo, vetam o que acham errado. Através dessa expropriação do direito de raciocinar, que pretendem tornar uma atividade privativa do Estado, como a exploração de petróleo ou a emissão de passaportes, os gatos gordos do regime decidiram que o Regimento Interno do STF vale mais que a Constituição. A partir daí, liberou geral para eles, gatos gordos — e fechou geral para os demais. Discordar do que decidem tornou-se “antidemocrático”. Pode dar cadeia.

“Não à gravidez infantil” é a campanha que se levantou contra o projeto de lei que limita o aborto legal a 22 semanas de gestação – Foto: Reprodução/Avaaz

Não é mais permitido pelo Núcleo Integrado de Combate às Ideias Próprias ora em operação no Brasil ser a favor da liberdade econômica: o presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, cuja principal contribuição para o serviço público foi a criação de um novo mapa-múndi com o Brasil no meio, acaba de decretar que o entendimento liberal da economia, que eles chamam de “neoliberal”, conduz o país ao “nazifascismo”. É proibido solicitar mais provas científicas de que haja, na realidade objetiva, uma “crise climática”; os mais agitados dizem, a propósito, que estamos numa Terceira Guerra Mundial, que vai se encerrar com a extinção da vida no “planeta”. É proibido estabelecer o ensino da língua portuguesa segundo as regras da gramática oficial. É terminantemente proibido defender a anistia para os condenados por um crime que nunca foi cometido, o “golpe” do dia 8 de janeiro de 2023.

O “novo normal” do governo, do STF e do “processo civilizatório” é cada vez mais anormal. Faz sentido, por exemplo, um país onde o principal herói da esquerda é o ministro Alexandre de Moraes? Também não pode ser sadia uma situação em que boa parte dos jornalistas se transformou em informantes da polícia — e em que a delação se tornou uma virtude democrática. O “novo normal” acha normal denunciar exilados políticos como “fugitivos da Justiça”. Defende a adoção da censura prévia nas redes sociais. Não admite que haja alguma coisa errada com um inquérito policial contra fake news, por sinal fora da lei, que foi aberto há cinco anos pelo STF e até agora não conseguiu indiciar um único militante de esquerda. Considera legítimo que uma ativista do PT declare em público que espalhou notícias falsas em favor de Lula durante a última campanha eleitoral — tanto que o presidente da República, em pessoa, achou que era seu dever fazer um elogio oficial a ela. Ninguém, nesse ecossistema, vê nada de mal em propor ações penais contra um crime que não existe, esse mesmo das fake news — mas só quando o acusado é da “extrema direita”, como se descreve hoje em dia todo cidadão que discorda das doutrinas oficiais.

Uma sociedade está doente, enfim, quando a sua suprema Corte de Justiça anuncia que vai contratar uma empresa para lhe contar tudo o que está sendo dito ou escrito a seu respeito pelas pessoas a quem cabe proteger. Por que isso, se o brasileiro tem o direito constitucional de dar a sua opinião sobre o STF, ou sobre qualquer outra coisa? Os ministros dizem que querem “monitorar” a sua imagem junto ao público em geral. Tudo bem — uma fábrica de goiabada, por exemplo, também pode contratar um serviço de clipping com o que é publicado sobre ela nos meios de comunicação. Mas o STF quer que a empresa contratada lhe entregue os nomes de cada cidadão que falou alguma coisa em relação ao tribunal ou a seus ministros, 24 horas por dia. Por que os nomes? Para enviar agradecimentos pelos elogios? “Tenha dó”, como disse o ministro Moraes a seu colega André Mendonça.

A reportagem de Oeste revelou que o serviço contratado pelo Supremo funcionaria 24 horas por dia e sete dias por semana | Foto: Divulgação/Revista Oeste | Imagem gerada por inteligência artificial
Serviço contratado pelo Supremo para controlar tudo que é falado nas redes sociais funcionaria 24 horas por dia e sete dias por semana – Foto: Divulgação/Revista Oeste

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

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