Um Brasil degenerado

O STF deu a si próprio o poder ilegal de substituir as leis do país pelas convicções, os interesses ou os desejos dos ministros

Foto: Revista Oeste/Gerada por IA

Por J. R. Guzzo (*)

O Brasil está vivendo hoje debaixo de uma árvore envenenada. O Supremo Tribunal Federal perdeu a sua capacidade de aplicar a lei e, com isso, carregou a sociedade brasileira para uma situação de selvageria legal. O país, simplesmente, deixou de viver num sistema de deveres e de obrigações escrito na Constituição Federal e coerente com os direitos universais da pessoa humana. Passou a obedecer, como numa tribo primitiva, ao comando de quem tem a força, e não a razão. O bom princípio do Direito estabelece que uma árvore envenenada só pode produzir frutos igualmente envenenados. É exatamente o caso do STF atual. Deu a si próprio o poder ilegal de substituir as leis do país pelas convicções, os interesses ou os desejos dos ministros. A partir daí, como os frutos da árvore contaminada, tudo o que decide é ilegal.

O Brasil, por força dessa aberração permanente, deixou de ser um Estado de Direito. É o que explica essa multiplicação descontrolada, dia após dia, de violações da legalidade, da ordem e dos direitos individuais do cidadão brasileiro. Viver fora da lei é o “novo normal” imposto ao Brasil pelo STF — e é por isso que você vê esse trem fantasma passando o tempo inteiro à sua frente no noticiário. Pense em alguma coisa ilegal: o STF já fez, está fazendo ou vai fazer daqui a pouco. O último objeto a sair dessa linha de montagem é a descida do Brasil à fossa dos países onde o X não é admitido — Rússia, Irã, Coreia do Norte e coisas parecidas. É mais uma consequência direta das decisões sistemáticas de Alexandre de Moraes para censurar as redes sociais e perseguir os seus usuários. O caso é a cara do Brasil sem lei, onde o veneno só produz veneno.

Elon Musk comparece à cerimônia de inauguração da nova Tesla Gigafactory para carros elétricos em Gruenheide, Alemanha - 22/3/2022 | Foto: Patrick Pleul/Reuters
Elon Musk se recusou a obedecer às ordens de censura de Alexandre de Moraes, do STF | Foto: Patrick Pleul/Reuters

O ministro, que há tempos declarou guerra ao X e a seu proprietário, Elon Musk, mandou a plataforma censurar perfis e entregar dados pessoais de brasileiros que se manifestam nela. Isso é ilegal, e o X se recusou a obedecer a uma ordem ilegal. Moraes, em resposta, ameaçou prender a presidente da empresa no Brasil. Elon Musk, então, anunciou que estava fechando seus escritórios no país; ele não tem necessidade nenhuma de obedecer ao ministro, e não obedeceu. Eis aí, em toda a sua essência tóxica, a árvore envenenada do Supremo. A transformação ilegal da Corte em delegacia de polícia e vara criminal leva à decisão ilegal de censurar. A censura ilegal leva a ordens ilegais contra os usuários do X. As ordens ilegais levam à ameaça ilegal de prisão. A ameaça ilegal leva uma plataforma de comunicação mundial com 300 milhões de contas a sair do Brasil.

A célula maligna que levou o país a esse processo de metástase está na recusa deliberada do STF em obedecer à jurisprudência firmada pelo próprio STF quase 30 anos atrás, e desde então jamais revogada. “Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial”, decidiu o STF em 1996, num habeas corpus relatado pelo ministro Maurício Corrêa. “Mais: é dever da cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito.” Qual é a dúvida que se poderia ter em relação a isso? Vai para o espaço, em primeiro lugar, a máxima segundo a qual “ordem judicial não se discute, se cumpre” — uma idiotice elevada à condição de norma sagrada no Brasil de hoje. Em segundo lugar, fica evidente que Alexandre de Moraes e o STF estão obrigando o Brasil a cumprir não o que está na lei, no caso a sua jurisprudência, e sim o desejo dos atuais ministros.

O que Elon Musk fez de errado, do começo ao fim dessa comédia? Nada. E o STF? Tudo. A lei proíbe que Moraes, ou qualquer outra autoridade, impeça alguém de se manifestar sem que haja decisão judicial determinando isso, dentro do processo previsto em lei. Na última decisão do ministro não havia ordem judicial nenhuma mandando o X suspender perfis, ou entregar a ele o CPF, o endereço e o número da conta do usuário no banco. As ordens que deu ao X, portanto, são ilegais. Sendo ilegais, nem Musk nem ninguém está obrigado a fazer aquilo que determinam; tem o direito e o dever de se opor a elas, isso, sim. Cumprir a lei, porém, dá cadeia no Brasil de Alexandre de Moraes. Ou melhor: dá cadeia para os coitados que entram em suas listas negras. Musk não é nenhum coitado, não mora no Brasil, tem US$ 300 bilhões no bolso e pode mandar o ministro para o diabo que o carregue. Foi o que ele fez.

Para os brasileiros que acreditam na liberdade de palavra, foi uma lavagem de alma. Para o governo Lula, sócio com responsabilidade ilimitada no bas-fond legal criado pelo STF, pelos jornalistas auxiliares da polícia e pelo bioma intelectual, foi um momento de neurastenia enfurecida. Musk, mais uma vez, foi descrito como um débil mental bilionário que tem mania de soltar foguetes no espaço e se meter nos “assuntos internos” do Brasil. Não são capazes, é claro, de citar um único “assunto interno” do Brasil em que ele tenha se metido, ou uma lei brasileira que ele não tenha cumprido ou um imposto que não tenha pago, no X ou em qualquer de suas atividades. É o exato contrário: está sendo perseguido por cumprir a determinação do falecido ministro Maurício Corrêa. O resumo dessa explosão histérica é a declaração de um ministro-símbolo do nível cultural do governo Lula: “By by [sic] Elon Musk!”. É o semianalfabeto em português sendo analfabeto em inglês.

É, também, mais um boleto da conta que o Brasil está tendo de pagar por causa do império da ilegalidade criado pelo STF. O que os brasileiros ganham com a saída do X? Três vezes zero; é apenas mais uma dose de atraso direto na veia. Lembra um dos grandes momentos da filosofia de treva do PT — o manifesto de um ex-governador do partido festejando a saída de uma fábrica da Ford do Rio Grande do Sul como uma vitória do povo gaúcho no combate ao “imperialismo americano”. Eis aí, na vida como ela é, a desordem que segundo a imaginação da esquerda o X e a liberdade de expressão tentam criar no Brasil. A guerra contra Musk, na verdade, é a guerra contra a lei disfarçada de “resistência” em favor da democracia, da virtude e do respeito às decisões judiciais. E o caso do X, obviamente, é apenas uma parte da degeneração progressiva do ordenamento jurídico do Brasil.

É impossível ter respeito pelas decisões de um sistema no qual um juiz em serviço no STF, frustrado pela recusa da Interpol em cumprir um mandado de prisão ilegal, diz a um colega do mesmo tribunal: “Dá vontade de mandar uns jagunços pegar esse cara na marra e colocar num avião brasileiro”. É o que revela mais um trecho das gravações de conversas entre altos magistrados do eixo STF-TSE que foram obtidas pelos jornalistas Glenn Greenwald e Fabio Serapião e vêm sendo publicadas há dias pela Folha de S. Paulo. Nessa conversa, o juiz auxiliar Marco Antônio Vargas, que trabalha no gabinete do ministro Moraes, se mostra indignado porque a Interpol ignora os pedidos de extradição feitos pelo STF contra o jornalista brasileiro Allan dos Santos — que se exilou nos Estados Unidos para escapar dos cárceres da nossa Suprema Corte de Justiça.

Notícia publicada no Estado de S.Paulo (13/8/2024) | Foto: Reprodução/Estadão

Por qual critério se pode admitir que um juiz de Direito, no exercício de suas funções no STF, diga que quer mandar capangas sequestrar um cidadão brasileiro no exterior? Isso é crime, punido no Código Penal com pena de reclusão. Todo o alto Judiciário está empenhado em punir o ex-presidente Jair Bolsonaro porque ele quis, segundo as acusações que lhe fazem, dar um golpe de Estado. Mais até que isso, pessoas estão sendo condenadas a até 17 anos de prisão pelo STF por quererem dar um golpe na baderna do dia 8 de janeiro de 2023 em Brasília. O juiz auxiliar do ministro Moraes diz, em conversa gravada, que quer praticar o crime de sequestro. Como ficamos, então? Já é um escândalo que um membro do STF peça para a polícia internacional fazer uma prisão política — a Interpol não executa ordens ilegais. O juiz Vargas, agora, quer que o Supremo use jagunços.

Nem o ministro, nem qualquer dos seus colegas, nem os comunicadores, nem os demais militantes do “processo civilizatório” consideram ilegal a declaração do juiz. Não disseram uma única palavra sobre o assunto, e esse é um caso clássico de “quem cala consente”. O motivo para isso é muito simples: todos eles concordam com o juiz que está a serviço de Moraes, e o juiz sabe muito bem disso. Não vai receber nem sequer uma repreensão. Por que haveria de receber? Um colega seu decidido a “desmonetizar” a Revista Oeste instruiu um funcionário do TSE a usar a “criatividade”, ao ser informado por ele que só havia encontrado material jornalístico nas suas investigações. Deve ter usado, pois a revista ficou mais de um ano sem receber a remuneração a que tinha direito. Qual é o problema, se o legal é o que o ministro manda fazer?

A árvore envenenada que está destruindo o sistema de Justiça do Brasil foi plantada cinco anos atrás, quando o ministro Dias Toffoli, então na presidência do STF, mandou Moraes abrir um inquérito penal para impedir a revista Crusoé de publicar notícias que ele não queria ver publicadas. Era veneno puro. Toffoli não tinha o direito de abrir o inquérito, nem de nomear Moraes sem sorteio, nem de investigar pessoas que não têm foro especial — as únicas, pela lei, que o STF está autorizado a processar em ação penal. Pior ainda, Moraes não tinha direito de manter o inquérito aberto para sempre, e muito menos de enfiar nele questões e pessoas que não têm absolutamente nada a ver com Toffoli, nem com a censura que ele impôs à revista. Tudo o que o inquérito ilegal gerou, desde então, está contaminado pelo pecado original da ilegalidade.

O que há, no fundo, é uma maçaroca em que Moraes vai socando tudo o que lhe dá na telha: fake news, “desinformação”, “milícias digitais”, “atos antidemocráticos”, “discurso de ódio”, “ataques ao STF” e daí até o infinito, incluindo conversas particulares no WhatsApp

É ilegal um inquérito sem data para terminar — “acaba quando acabar”, diz Moraes. É ilegal que não tenha um objetivo específico. É ilegal que possa indiciar qualquer um dos 200 milhões de cidadãos brasileiros, com exceção dos sócios do STF, e envolver qualquer assunto, na base do “pega um pega geral”. Não existe nada de parecido em nenhuma democracia do mundo — um inquérito perpétuo, contra tudo e contra todos, e que se baseia oficialmente no regimento interno do STF, com o qual o país não tem nada a ver. O inquérito aberto em março de 2019, na verdade, tornou-se uma lei em si, que não pode ser contestada por nada do que está escrito na Constituição Federal e no restante da legislação em vigor no Brasil. É tão ilegal, em suma, que nem o próprio gabinete de Moraes ou o Ministério Público são capazes de dizer quantos inquéritos estão valendo.

Isto, sim, é uma terra de ninguém: uma nação em que o poder público não sabe quais são os seus próprios atos oficiais. O que há, no fundo, é uma maçaroca em que Moraes vai socando tudo o que lhe dá na telha: fake news, “desinformação”, “milícias digitais”, “atos antidemocráticos”, “discurso de ódio”, “ataques ao STF” e daí até o infinito, incluindo conversas particulares no WhatsApp. Por causa dessa anarquia toda, os advogados não sabem do que os seus clientes estão sendo acusados, ou mesmo se estão indiciados — e a quem, quando e como devem dirigir as suas defesas. Não podem fazer sustentação oral. Não podem apelar de nenhuma decisão, pois o STF é a primeira e a última instância ao mesmo tempo. Como no tribunal secreto de O Processo, de Kafka, ninguém, nunca, é absolvido de nada.

Alexandre de Moraes, então presidente do TSE, durante cerimônia de posse do diretor-geral da PF, na sede da corporação, em Brasília (10/1/2023) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em simetria com a ilegalidade do inquérito há a ilegalidade das punições — a começar pela aplicação de penas sem julgamento do delito. Como o cidadão pode ser inocentado, ou sequer se defender, se não é julgado? Há o castigo da censura nas redes sociais, essa mesma da qual o X não quis participar. Há quebras de sigilo, bloqueio do pagamento de salários e congelamento de contas bancárias. Há a prisão preventiva por tempo indeterminado. Há a tortura da tornozeleira eletrônica. Há confisco de passaportes — não para impedir criminosos de escaparem da Justiça, mas para punir pessoas que não foram condenadas pela Justiça. A isso tudo vieram se juntar os processos do 8 de janeiro — ilegais porque se baseiam num crime de “golpe de Estado” que não foi cometido, condenam pessoas que não poderiam ser julgadas pelo STF e violam os direitos dos réus.

O que o Brasil tem hoje são duas árvores envenenadas, o “inquérito do fim do mundo” de Alexandre de Moraes e o inquérito do 8 de janeiro — no qual os acusados, para completar, estão sendo punidos, cumulativamente, por “golpe de Estado” e “abolição violenta do Estado de Direito”, algo como condenar alguém por homicídio e assassinato ao mesmo tempo, com penas somadas de prisão. Só há uma maneira de parar essa produção contínua de veneno: encerrar o inquérito de Moraes, anular todas as suas decisões e apagar o processo do golpe que não aconteceu, com a anistia de todos os envolvidos e a manutenção exclusiva das condenações por destruição do patrimônio público. Ou se encontra, e depressa, um caminho para eliminar a intoxicação crescente da ilegalidade ou o Brasil não terá paz. O ministro Moraes e os extremistas que hoje são a sua base de apoio não querem essa paz — que chamam de “apaziguamento”. Ou os seus dez colegas, a maioria do Congresso e quem mais tem poder de decisão na vida pública põem um fim na insensatez, ou concordam com eles. Nesse caso, se tornam cúmplices de uma corrida para o desastre.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-231/um-brasil-degenerado/

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