Sim, somos soberanos e precisamos falar sobre isso

Combater o crime organizado e explorar bem os recursos afirma mais o Brasil do que retaliar os EUA

Brasil precisa mostrar sua força: tem muito a oferecer ao mundo – Foto: Alan Santos/PR

Por Nuno Vasconcellos (*)

Sem que ninguém ligasse um ponto ao outro, o Brasil se viu, na quinta-feira passada, diante de três fatos que, embora não pareçam guardar qualquer relação entre si, têm tudo para alimentar um debate sensível, importante e necessário: o que trata da soberania nacional. Isto é, da verdadeira soberania nacional — e não da retórica que tem inflamado o ambiente político nos últimos dias.

O primeiro, talvez o mais eloquente desses três pontos, foi a megaoperação batizada de Carbono Oculto, conduzida pelo Governo Federal e pelo estado de São Paulo, que expôs a extensão e a diversidade dos tentáculos da facção criminosa conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC).

Pelo que se viu na operação, o PCC já deixou de ser um bando convencional de malfeitores e se consolidou nos últimos anos como uma organização narcoterrorista altamente sofisticada. A megaquadrilha não pode mais ser vista como um aglomerado de bandidos comandado de dentro das penitenciárias ou de bunkers escondidos nas comunidades da periferia. Ela, agora, também está instalada em escritórios luxuosos na avenida Faria Lima, em São Paulo — o coração do sistema financeiro nacional. Este foi o primeiro destaque da semana.

Outro fato importante — que pode marcar uma mudança radical na postura adotada pelo Palácio do Planalto em relação ao contencioso comercial, geopolítico e diplomático com o governo dos Estados Unidos — foi a decisão, também anunciada na quinta-feira, de utilizar a Lei da Reciprocidade, sancionada em abril passado, para retaliar as tarifas de até 50% aplicadas pelo governo dos Estados Unidos aos produtos brasileiros.

Por enquanto, tudo o que existe a respeito dessa alteração de conduta é a ordem dada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que a Câmara do Comércio Exterior (Camex) estude a situação e indique os produtos que podem sofrer a retaliação. Porém, apenas o fato de o presidente haver dado a largada nesse assunto delicado já indica uma possibilidade de enfrentamento que, até aqui, não havia sido incluída entre as alternativas desse jogo.

Se esse fato não parece guardar qualquer relação com o anterior, as cartas sobre o tabuleiro parecem ainda mais desencontradas quando se olha para o terceiro e último item da lista de acontecimentos relevantes para a soberania que vieram à tona na semana passada.

Também na quinta-feira, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), anunciou estar negociando com o governo do Japão e com empresas brasileiras um acordo que prevê a prospecção, exploração e processamento de terras raras no estado. Desde que o tema das terras raras e dos minerais estratégicos ganhou força no debate mundial, essa foi a atitude mais visível tomada por uma autoridade do país no sentido de se explorar e transformar em riqueza as formidáveis reservas que o país possui desse tipo de mineral.

Dono de 23% dos estoques de terras raras — atrás apenas da China, que abriga 49% das reservas desses elementos fundamentais para a indústria do terceiro milênio —, o Brasil está diante de uma oportunidade e tanto de utilizar os recursos de seu subsolo não para se consolidar como um país extrativista, mas como um ator estratégico desse jogo.

A posição do Brasil nesse ranking pode ser ainda melhor do que essa. Existem neste momento 27 projetos de pesquisa em andamento não apenas no estado de Goiás, mas também em Minas Gerais, Bahia, Tocantins, Amazonas, Mato Grosso, Paraíba e Piauí. A soma de tudo isso dá ao país a oportunidade de se firmar como uma potência indispensável para os negócios do mundo. Apenas a riqueza já mapeada nas jazidas de Goiás, de Minas Gerais e da Bahia já é suficiente para dar ao Brasil uma importância estratégica equivalente à que o Oriente Médio adquiriu com seus poços multimilionários de petróleo.

Atenção! O momento é promissor, mas exige cuidado. A existência do minério, por si só, não dá ao Brasil qualquer vantagem nesse jogo. Em outras palavras, que valem para esse e muitos outros casos, não basta ter os recursos. É preciso saber usá-los.

Vazamento de Informações

Se ninguém fez isso até agora, chegou o momento de tentar estabelecer uma ligação entre os três episódios que marcaram a semana passada. Pelas circunstâncias que envolvem cada um deles, esses três fatos têm tudo para dar uma dimensão mais concreta e menos eleitoreira ao debate em torno da soberania nacional — que foi puxada para o centro da cena política nacional a partir do momento em que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a aplicação das tarifas estratosféricas sobre os produtos brasileiros.

Até aqui, o tema mereceu um tratamento meramente retórico. Mas, a partir do momento em que passar a ser discutido em torno de situações concretas, como os três acontecimentos da quinta-feira, a soberania nacional pode ganhar uma nova dimensão e mostrar sua verdadeira importância. Vamos por partes.

O que a operação Carbono Oculto, que mirou o PCC, tem a ver com a soberania nacional? Absolutamente tudo. Para começo de conversa, a operação foi marcada pelo uso adequado dos recursos do Estado — mais especificamente, o uso eficiente de ferramentas modernas de informação e de inteligência em benefício da operação. A rigor, a operação só chegou ao sucesso que teve porque o ambiente estava devidamente mapeado no momento em que os 1.400 agentes da Polícia Militar de São Paulo, da Receita Federal e da Polícia Federal puseram os pés nas ruas para cumprir os mandados de prisão e de busca e apreensão de documentos capazes de comprovar aquilo que vinha sendo investigado.

O trabalho de investigação foi iniciado meses atrás, no âmbito do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo e, depois, levado ao conhecimento dos grupos de inteligência da Polícia Militar. A intenção inicial era recolher elementos que servissem de base para uma operação contra a presença cada vez mais ostensiva do PCC no comércio de combustíveis da capital.

Na medida em que as investigações avançavam, ficou evidente que a dimensão do problema era nacional. E que os postos de gasolina dominados pela organização não apenas em São Paulo, mas em vários estados do país, eram apenas as manchas mais aparentes de um câncer que já havia se alastrado e gerado metástase em órgãos ainda mais sensíveis da sociedade.

O passo seguinte foi a inclusão do Ministério Público Federal, da Polícia Federal, da Receita Federal na operação. Há sinais de que, na medida em que se aproximava a data do desfecho da operação, informações que deveriam ter sido mantidas em sigilo vazaram e chegaram ao conhecimento dos bandidos. Tanto assim que, dos 13 mandados de prisão expedidos pela Justiça, apenas seis foram cumpridos — num sinal evidente de que o vazamento livrou alguns dos acusados da ação policial.

Atitude Oportunista

Seja como for, as ações coordenadas em vários estados resultaram no bloqueio imediato de R$ 3,2 bilhões — valor que corresponde, numa comparação que se presta apenas a dar uma noção de grandeza do dinheiro movimentado pela facção, aos recursos disponibilizados pelo governo para ressarcir os aposentados tungados por sindicatos desonestos na fraude no INSS! Além disso, foram arrestados 141 veículos, 192 imóveis e duas embarcações. Um total de 41 pessoas físicas e 255 empresas tiveram recursos bloqueados — o que inclui a suspensão imediata de 21 fundos de investimento.

Calma que os números são muito mais eloquentes do que esses! As investigações indicam que o PCC tinha sob seu controle pelo menos 40 fundos de investimento, com patrimônio somado que ultrapassa R$ 30 bilhões. Foi detectado, ainda, o financiamento de quatro usinas produtoras de etanol, um terminal portuário e uma frota de 1.600 caminhões destinados ao transporte de combustíveis.

A organização contava ainda com uma rede própria de maquininhas para a movimentação de valores sem o risco de rastreamento pelo Banco Central e o uso de fintechs para dificultar o bloqueio dos recursos. O esquema também envolvia a importação irregular de metanol, nafta e diesel, usados na adulteração de combustíveis e para fraudes fiscais avaliadas em quase R$ 8 bilhões. Também foi detectada a aquisição de 100 imóveis, incluindo seis fazendas no interior de São Paulo.

Os números são, de fato, portentosos e podem se tornar ainda mais superlativos nos próximos dias, com o aprofundamento das investigações e os desdobramentos da operação. No entanto, é preciso ter cuidado. Nem todas as empresas investigadas pertencem à organização criminosa. O PCC e outras facções utilizaram empresas legalizadas para se infiltrarem em bancos, corretoras e estruturas financeiras de casas com grande tradição e credibilidade. Essas instituições devem ser investigadas, mas não expostas publicamente de forma precipitada. O Brasil precisa punir criminosos, não condenar inocentes. O alvo deve ser o crime organizado, não a reputação de empresas sérias que sustentam a economia formal. Quando o Estado erra o alvo, não atinge o crime — destrói a confiança.

Nesse cenário, o governo se equivocou ao querer comemorar a vitória com a partida ainda em andamento. Isso mesmo! De qualquer forma, e a despeito da atitude oportunista de autoridades que nem esperaram pelo balanço final para reivindicar para si todas as glórias e para fazer acertos indevidos de contas, o certo é que a operação, por mais bem-sucedida que tenha sido, não encerra, mas apenas expõe a dimensão do problema. O PCC não foi aniquilado na semana passada. O que aconteceu foi apenas um golpe violento no coração financeiro do crime organizado.

Mais do que uma vitória acachapante, e por mais condenável que tenha sido a disputa entre o governo federal e o governo de São Paulo pela autoria da operação, a Carbono Oculto revelou que, com inteligência e ação conjunta de órgãos do Estado — sejam eles federais ou estaduais —, é possível recuperar o controle de áreas e atividades que estavam sob domínio da bandidagem. Até onde a memória alcança, essa foi a primeira vez que uma ação contra esse tipo de facção pôde ser vista não apenas como uma operação policial, mas, também, como um movimento de afirmação da soberania nacional.

Zelar pela Própria Casa

Ainda há muito o que fazer antes de dar o PCC como derrotado — mas o certo é que a ação da quinta-feira passada demonstrou a possibilidade de combater as facções mais poderosas justamente nos pontos em que elas parecem mais fortes e inatingíveis. E, com isso, afirmar a soberania do Estado e da sociedade sobre as organizações criminosas. Esse, aliás, é o ponto que interessa. Defender a soberania exige gestos muito mais efetivos do que bater no peito e desafiar para a briga uma potência da dimensão dos Estados Unidos — que pode oferecer muito mais vantagens caso seja tratada como amiga do que como inimiga do Brasil.

Antes de se afirmar a soberania contra uma potência que tem muito a oferecer ao Brasil, é preciso zelar pela própria casa. Isso inclui restaurar as fissuras abertas pela presença ostensiva de organizações que se apropriaram de recursos lícitos — como o comércio de combustíveis, o agronegócio e o mercado de capitais — para tornar a sociedade ainda mais refém de suas atividades criminosas.

Naquilo que realmente conta — ou seja, o bem-estar da sociedade —, o golpe desferido contra o PCC foi muito mais efetivo para a afirmação da soberania nacional do que a decisão anunciada pelo governo de estudar medidas de retaliação ao tarifaço imposto por Trump aos produtos brasileiros. A justificativa do governo é forçar a Casa Branca a abrir canais de negociação que só não existem porque, antes da crise estourar, o Itamaraty cuidou de fechar todas as portas e romper todos os laços construídos ao longo de mais de 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países. Agora, terá que esperar na fila por sua vez de ser atendido pelos negociadores americanos.

Enquanto as negociações não se iniciam — o que acontecerá mais cedo ou mais tarde —, a pior decisão a tomar é apontar entre os produtos vendidos pelos Estados Unidos aqueles que serão taxados com as mesmas tarifas indecentes impostas por Trump ao Brasil. Retaliar numa situação como essa pode ser um direito legítimo, mas seu efeito prático é incerto e limitado. Muito mais estratégico para o Brasil seria posicionar-se como um parceiro indispensável não porque é afetado pelo tarifaço, mas porque tem o que oferecer. O Brasil não precisa de uma guerra tarifária, precisa de alianças inteligentes. O momento exige menos busca por manchetes e mais visão de futuro!

Se a intenção do governo for apenas mostrar as cartas e criar uma situação que provoque a abertura da negociação que, pelas palavras do próprio presidente Lula, Trump tem se recusado a fazer até o momento, ótimo. Mas o que o país precisa fazer é usar seu verdadeiro poder de barganha nas relações comerciais com os Estados Unidos e com qualquer outro país do mundo. É aí que entram os minerais estratégicos.

Nióbio, lítio, urânio e as chamadas terras-raras são insumos indispensáveis para baterias, semicondutores, ligas leves, turbinas, foguetes, armamentos, veículos de defesa e tudo o que diz respeito ao hardware de suporte da inteligência artificial e da transição energética. A boa notícia é que o Brasil dispõe desses minerais em grande quantidade: as jazidas já mapeadas são mais do que suficientes para suprir todas as necessidades do Ocidente que, hoje, depende da China para atender suas necessidades.

Se o Brasil quiser mesmo normalizar suas relações comerciais com Washington, precisa, para início de conversa, oferecer aquilo que Trump mais teme perder para a China: acesso seguro e preferencial a esses insumos críticos. Isso mesmo! O governo brasileiro não pode se esquecer de que, nesse caso específico, a China não é sua parceira, mas sua maior concorrente. É preciso abandonar de vez a retórica inócua do tal “multilateralismo” e acenar para Washington com acordos consistentes em torno do acesso não às jazidas, mas aos produtos processados a partir do que vier a ser minerado.

Essa riqueza é mais respeitada pelos Estados Unidos do que qualquer retórica ideológica. Se o Brasil souber usar esse argumento a seu favor, deixará de ser posto no fim da fila pelos negociadores e terá um tapete vermelho estendido à sua frente para tratar de qualquer assunto comercial com os Estados Unidos. Essa riqueza, é óbvio, deve ser explorada sob condições estabelecidas pelo Brasil, por empresas que operem sob a proteção e o controle da legislação nacional. Ela é mais valiosa para os Estados Unidos do que os discursos de afirmação da soberania nacional que vêm sendo feitos desde que tudo isso começou.

Um acordo bilateral em torno desses minerais críticos, semelhante ao que os Estados Unidos já firmaram com o Canadá e a Austrália, pode posicionar o Brasil como um ator indispensável no tabuleiro global. Não se trata de entregar riquezas de mão beijada, mas de usá-las como alavanca diplomática e industrial. O Brasil deve transformar sua geologia em geopolítica.

Nesse cenário, a lição que une os três episódios da semana passada é clara: diante de problemas como o impasse com os Estados Unidos, não basta reagir com eloquência. É preciso pensar estrategicamente. Combater o crime com inteligência é um ato de afirmação de sua soberania, assim como reposicionar-se no comércio internacional com mais pragmatismo e menos ideologia. Da mesma forma, é preciso se valer de credenciais como as reservas de minerais estratégicos para se firmar como uma potência indispensável para o mundo. O futuro do país não está em reagir às crises, mas em liderar soluções.

(*) Empresário luso-brasileiro

Fonte: https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/nuno-vasconcellos/2025-08-31/sim–somos-soberanos-e-precisamos-falar-sobre-isso.html

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