
Por Nuno Vasconcellos (*)
O mais espantoso, diante das cenas dramáticas produzidas pela operação policial que, na terça-feira passada, transformou as regiões da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, num campo de batalhas sangrento como as ruas de Gaza, é olhar para o morticínio como um fato surpreendente. Nada disso! Consequência indesejável de uma tensão que se acumula há décadas, o resultado da ação que deixou mais de 120 mortos era mais do que previsível. E se o Estado brasileiro assumir em relação a essa tragédia a mesma postura que teve diante dos flagelos anteriores — quando muito se prometeu, mas nada se fez de efetivo para resolver a situação —, pode-se apostar que novos capítulos dessa novela irão ao ar antes que se consiga entender o que aconteceu.
A operação de 28 de outubro, a despeito da quantidade de mortos, não alterou a realidade dos morros cariocas. Se alguém duvida, basta procurar saber se houve alguma mudança na rotina das mais de 800 favelas da cidade de terça-feira para cá. Tudo segue como antes. Bandidos armados com fuzis e outras armas pesadas com certeza continuam andando para lá e para cá, sendo informados por uma rede de olheiros sobre qualquer movimentação policial que ameace seus domínios. O tráfico de drogas continua ativo e as centenas de milhares de moradores que vivem nas comunidades — a maioria, trabalhadores submetidos a uma dupla exploração — continuam sob o jugo dos criminosos.
Que dupla exploração é essa? Os moradores das comunidades cariocas e fluminenses são vítimas do Estado — que lhes nega as condições mínimas de dignidade e bem-estar. E, também, dos traficantes que, além de usá-los como escudos para suas atividades ilegais, os extorquem de todas as maneiras possíveis. Morar nas comunidades do Rio de Janeiro significa ser obrigado — a despeito da propaganda do governo federal que promete gás de graça para todos — a comprar seus botijões pelo dobro do preço de “distribuidoras” mantidas por escroques. Significa ser forçado a assistir TV por canais piratas, mantidos por operadoras fraudulentas.
Pior: significa ver as filhas mal saídas da infância expostas a situações degradantes, que praticamente as reduzem a objetos sexuais nas mãos dos criminosos. Essa é a realidade em vastas extensões do território nacional sobre as quais o Estado abdicou da soberania, assumida por criminosos que exploram a miséria das pessoas.
Num cenário como esse, faz parte da rotina das comunidades ver os bandidos reagirem a bala a qualquer tentativa de entrada da polícia nos territórios sob seu domínio. E, também, faz parte ver a polícia atirar de volta com a mesma agressividade — expondo a população ao risco, no meio do tiroteio. Diante de cenas assim, que se repetem há décadas, a operação de 28 de outubro chama atenção pela quantidade exagerada de vidas que custou. Mas nem por isso pode ser tratada como um fato surpreendente.
Calma! Ninguém em sã consciência pode achar corriqueira uma operação policial que tirou mais de 120 vidas e espalhou o pavor por todo o Grande Rio. Aulas foram suspensas, linhas de ônibus foram desviadas, viagens de trem foram interrompidas, o comércio foi fechado em muitos pontos e a fragilidade da sociedade diante do poder de fogo dos bandidos ficou mais uma vez evidente. Mas a imagem que ficou, como resumo de uma ópera macabra, no final, foi a das dezenas de cadáveres em trajes íntimos, expostos lado a lado em praça pública.
A situação mais terrível, porém, não está naquela imagem dantesca, captada pelas câmeras e exibida para todo o Brasil e para o mundo. A situação mais terrível está na realidade que se esconde por trás de tudo isso! A realidade é a seguinte: o dia 28 de outubro começou muito antes do primeiro tiro, independentemente de quem o tenha disparado, ter abatido a primeira vítima. Isso mesmo! O drama não começou com a ordem do governador Cláudio Castro para que sua equipe de segurança iniciasse uma operação de grande escala numa área dominada por criminosos.
Imaginar que tudo tenha se iniciado ali não passa de uma demonstração de ingenuidade ou de uma tentativa mal-intencionada de ignorar a realidade. Pior ainda: reduzir a tragédia aos fatos do 28 de outubro é negar o câncer social que brotou nos morros cariocas há mais de quatro décadas. Um câncer que, com o passar do tempo, gerou metástases pelo Brasil e espalhou ramificações por dezenas de países. Por ter crescido sem que ninguém se esforçasse para contê-lo, o Comando Vermelho, de origem fluminense, se espalhou como erva daninha pelo Brasil e pelo mundo. E se tornou um tumor de tal dimensão que precisa ser extirpado, sob pena de comprometer todo o organismo.
Nesse contexto, a decisão de Castro de ordenar uma operação de grande dimensão contra uma organização que nunca foi desafiada para valer foi, no mínimo, corajosa. E, a despeito de não ter ameaçado a estrutura da organização e da quantidade de vidas que tirou — ou, talvez, justamente por causa delas — gerou uma situação que, talvez, não estivesse entre os objetivos do governador. Mas que pode ter sido o primeiro passo para transformar o combate ao crime organizado em prioridade nacional.
A principal consequência da operação foi dar projeção nacional e até internacional a uma realidade que, na maioria das vezes, é varrida para debaixo do tapete. Ou tratada como se fosse um problema exclusivamente carioca. Ou, no máximo, fluminense. Nada disso. O combate ao Comando Vermelho, assim como ao PCC, de origem paulista, deve ser posto como o objetivo número 1 do Estado brasileiro.
O Estado precisa fazer-se presente nas comunidades do Rio, de São Paulo, de Fortaleza, de Salvador e de todas as cidades onde há áreas sob poder das organizações. E essa presença, sejamos sinceros, não pode se resumir às “oficinas culturais” e às ONGs mantidas com dinheiro público e que, pelo menos até aqui, têm servido apenas para ajudar a manter a situação como está. Também não pode se resumir à realização ocasional de megaoperações policiais que, no final das contas, acabam não levando segurança, mas apenas espalhando mais medo entre a população que vive acuada.
Ações deletérias
Os ecos do dia 28 de outubro serviram para trazer para o centro do debate um problema que muitos preferiam ignorar. Esse talvez seja seu principal mérito. Esses ecos despertaram o governo federal e fizeram com que ele finalmente acordasse para a questão da segurança — diante da qual as administrações petistas, por decisão ideológica, sempre se omitiram. Mas agora, e de uma hora para outra, o primeiro escalão de Brasília saiu em defesa de medidas rigorosas de combate ao crime. Isso mesmo! Nos cinco dias que separam o 28 de outubro de hoje, 2 de novembro, Brasília falou mais sobre segurança pública do que nos 1.396 dias anteriores do governo.
Só o fato dessa mudança de postura ter acontecido já pode ser recebido como um avanço.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, depois que o governo foi cobrado publicamente pela falta de um apoio que, se não tivesse sido negado, poderia ter reduzido a letalidade da operação, resolveu conversar sobre o assunto. Na quarta-feira, ele se reuniu com o governador Castro no Palácio Guanabara. O ministro, como ele mesmo nunca procurou esconder, é um conhecido defensor da ideia de que o método mais eficaz de se combater a criminalidade é fechar os olhos para as ações deletérias dos bandidos. Ou, em outras palavras, de considerar que a melhor forma de melhorar as estatísticas da violência é fazer de conta que o crime não existe.
Desta vez, não foi possível fechar os olhos e o ministro se comprometeu a agir em conjunto com o governo fluminense para promover ações de combate ao crime. O Planalto parece ter se dado conta de que qualquer omissão em relação a esse tema pode custar caro a um governo que parece não ter outro objetivo a não ser o de recuperar a popularidade. Não causa espanto, portanto, que Lewandowski tenha saído da reunião com Castro prometendo colaborar com ações mais enérgicas para conter a violência.
Essa não foi a única consequência da decisão do governador e da atenção despertada pela operação que ele comandou. Os acontecimentos no Rio de Janeiro motivaram, também, a criação de um consórcio de governadores estaduais, com a finalidade de trocar informações e promover a colaboração entre as polícias civis e militares do país inteiro.
Para completar, países vizinhos, especialmente a Argentina e, em especial, o Paraguai mobilizaram suas forças de segurança e deslocaram tropas numerosas e bem armadas para vigiar as fronteiras com o Brasil. (O Senado também se mexeu e instalou uma CPI para investigar o caso. Mas a iniciativa do presidente da Casa, Davi Alcolumbre, sem dúvida, busca mais a autopromoção do que a solução do problema.)
Tomara que as promessas se consolidem e sejam mantidas mesmo depois que a comoção causada pela operação se arrefeça e ceda espaço para as tragédias que ainda estão por vir.
A verdade, porém, é que, se as atitudes de contenção das organizações criminosas tivessem sido tomadas anos atrás, enquanto o crime não era tão organizado como se tornou, talvez nem houvesse razão para se deflagrar uma operação pesada como a de 28 de outubro.
Acontece que, por covardia, omissão ou conivência, ninguém se mexeu para enfrentar o crime enquanto ainda era tempo, ou seja, antes que ele se tornasse forte demais para ser combatido com ações pontuais. Nenhum governo do Rio da década de 1980 para cá tratou como prioridade o combate ao crime que se expandia sob o nariz das autoridades. Em tempo: a experiência com as Unidades de Polícia Pacificadora, que se espalharam pelas favelas do Rio durante o governo Sérgio Cabral, é a exceção que confirma a regra.
Naquele momento, foi feito um barulho enorme em torno da instalação das UPPs nas comunidades para, ao longo da experiência, a situação se deteriorar e ficar ainda pior do que era antes de sua implantação. A verdade é que ninguém se mexeu para valer enquanto ainda havia a chance de evitar que o problema ganhasse a dimensão que ganhou. A situação foi crescendo em gravidade sem que ninguém agisse de forma mais determinada até resultar na operação letal da semana passada.
Cansaço da sociedade
A reação de autoridades do país inteiro e até do exterior depois da operação de 28 de outubro expôs a inércia que havia em relação a um drama que há anos vinha exigindo uma atitude mais firme por parte da União, dos estados e dos países vizinhos. Mas que, por ter sido sempre tratado como um problema que começava e terminava no Rio de Janeiro, permitiu que todos ficassem indiferentes a ele. É isso que a fotografia dos cadáveres expostos esconde: ao dar a ordem para a operação, Castro criou uma situação que tirou muita gente da zona de conforto e obrigou que todos se unissem em busca da solução de um problema que não é apenas do Rio, mas do Brasil inteiro. Isso já torna o governador merecedor de reconhecimento.
É claro que o apoio recebido pelo governador não teria sido tão efusivo se a operação não tivesse sido recebida como foi por quem mais interessa: a população do Rio de Janeiro. Um levantamento feito pela Arrow Pesquisas, do Rio, mostrou que 68,85% dos 2.210 entrevistados aprovaram a ação da polícia contra 24,43% que desaprovaram. Uma outra pesquisa, do Instituto Atlas Intel, mostra que o apoio à operação foi muito maior entre moradores de favelas do que entre o restante da população.
Os números impressionam pela diferença, como se dizia antigamente, entre os moradores do morro e os do asfalto. No caso específico do Rio, o apoio que a operação recebeu nas comunidades foi de 87,6%, contra 12,1% que desaprovaram a ação da política. Entre os residentes em outras localidades, a aprovação cai para 55% e a reprovação sobe para 40%.
Situação semelhante foi captada por outros levantamentos e, certamente, não escapou aos trackings encomendados pelos marqueteiros do Palácio do Planalto para orientar as decisões de um governo que só pensa em reeleição.
Talvez seja essa a principal explicação para os partidos da esquerda, pelo menos desta vez, medirem as palavras antes de fazer as acusações habituais ao trabalho da polícia. Desta vez, talvez pelo cansaço que a sociedade vem demonstrando diante do poderio crescente da bandidagem, pouca gente saiu dizendo que os criminosos são vítimas da sociedade e que a polícia tem a obrigação de receber os disparos dos bandidos sem ter o direito de disparar de volta.
Donos do morro
Seja como for, o confronto da terça-feira, por mais letal que tenha sido, foi um capítulo previsível de um roteiro que vem sendo escrito há anos. A ação foi desencadeada, sempre é necessário lembrar, pela tentativa de conter o avanço territorial do Comando Vermelho.
E mais: a operação foi devidamente autorizada pela Justiça, que expediu 94 mandados de prisão e de busca e apreensão contra criminosos que estavam na mira da Justiça.
Essa situação, naturalmente, desagradou os “donos do morro” (expressão antiga, utilizada desde o tempo do samba de breque, para mencionar os valentões que dominam as comunidades), que ordenaram a reação. Os procurados haviam sido localizados na região da Penha e do Alemão, onde se instalaram sob a proteção de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que ao longo de cinco anos dificultou as ações policiais nas favelas cariocas.
Mais do que dificultar o trabalho, essa decisão, conhecida como ADPF 635, simplesmente proibiu a presença da polícia nas favelas mapeadas no Rio de Janeiro e em extensas regiões do Estado — o que transformou as comunidades em territórios livres e consolidou o domínio da bandidagem e, comprovadamente, abriu as portas do Rio para criminosos procurados em outros estados, atraídos pela dificuldade de serem alcançados pelo braço da lei. Uma das consequências dessa situação (que não começou com a ADPF 635, mas se consolidou com ela) foi o aumento da presença e do poder de fogo dos bandidos.
Soberania sequestrada
É necessário insistir nesse ponto: as mortes da semana passada não foram resultado, como muita gente oportunista insiste em afirmar, de uma “operação mal planejada” marcada pela “falta de inteligência” por parte das autoridades fluminenses. Se valer de argumentos rasos como esse para politizar o debate é apelar para a crítica fácil de quem não quer resolver o problema, mas, ao contrário, levar algum tipo de vantagem com a persistência das hostilidades.
Insistir na tecla de que faltou inteligência em uma operação destinada a cumprir mandados judiciais contra criminosos condenados é cair na tentação da crítica fácil e oportunista. O mesmo vale para argumentos pré-fabricados, como aconteceu com o agora ministro Guilherme Boulos na quarta-feira passada, em seu discurso de posse na Secretaria Geral da Presidência da República.
Ao mencionar a operação policial, Boulos soltou uma daquelas frases que saem com facilidade das bocas dos políticos — mas que, no fundo, não querem dizer absolutamente nada. “A cabeça do crime não está no barraco da favela”, disse o ministro, que daqui por diante será responsável pelo relacionamento do Planalto com os entes da Federação. Trata-se, como se vê, de uma dessas manifestações que as autoridades têm utilizado para fugir das próprias responsabilidades e debitar tudo o que existe de ruim no Brasil na conta dos ocupantes do “andar de cima”.
Seria ingênuo supor que o alto comando do crime organizado esteja nas comunidades que explora e que seus cabeças vivam em barracos, sob as mesmas condições em que mantêm a população utilizada como escudo.
Não é assim que os terroristas agem. Apenas para efeito de comparação, os chefes dos terroristas que iniciaram a guerra no Oriente Médio e expuseram a população de Gaza à reação de Israel vivem refestelados em hotéis confortáveis, no Catar. É apenas um exemplo.
No caso do Brasil, o Estado precisa reagir à presença dos terroristas que assumiram a soberania sobre partes cada vez mais extensas do território nacional. Enquanto isso não acontecer, o país não estará completo. É isso que esses criminosos são: terroristas. E qualquer tentativa de negar esse fato significa se desviar da solução do problema.
O primeiro passo na direção da vitória numa batalha é saber contra quem se está lutando. E no caso dessa guerra — isso mesmo, guerra! — o adversário, ou seja, o crime, ao assumir o controle de faixas do território e usar a sociedade como escudo para suas ações, põe o Estado inteiro sob ameaça.
A sinceridade e a seriedade exigem, da mesma forma, que se deixe de empurrar a culpa de um lado para o outro. E que, aproveitando a oportunidade oferecida pelos ecos dessa operação, todos assumam seu quinhão de responsabilidade. A culpa pela situação ter chegado ao ponto a que chegou não é apenas do governo federal. Também não é do governo do Rio. Não do Judiciário. Nem do Legislativo. A culpa é de todos eles juntos. Sendo assim, é de todo o Estado brasileiro.
Enquanto a situação não se resolve, ao se ouvirem novas badaladas anunciando novos mortos nesse conflito que está longe de terminar, é o caso de perguntar: Por quem os sinos dobram? (Como fez o inglês John Donne, no poema reproduzido por Ernest Hemingway na epígrafe de seu magistral romance sobre a Guerra Civil Espanhola). E a resposta será: “Pelo Estado brasileiro”.
(*) Empresário luso-brasileiro
Fonte: https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/nuno-vasconcellos/2025-11-02/por-quem-os-sinos-dobram-.html











