
A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), por meio do Grupo de Trabalho (GT) “Teko Porã – Vida Digna”, realizou uma série de atividades em Manicoré para colher relatos sobre os impactos das recentes operações da Polícia Federal (PF) que têm resultado na destruição de balsas de garimpo no rio Madeira, entre Manicoré e Humaitá. Os depoimentos apontam para uma realidade complexa, onde o garimpo se tornou uma atividade de subsistência para ribeirinhos e indígenas locais, e a repressão agressiva gera danos sociais, econômicos e psicológicos severos.
Garimpo como necessidade e o aumento da fiscalização
Os ribeirinhos da região relatam que a necessidade da extração de ouro tem crescido nos últimos anos, sobretudo devido às enchentes cada vez mais severas do rio Madeira. As cheias têm destruído as plantações e roças – a segunda fonte de renda local – forçando as famílias a dependerem do garimpo para sobreviver.
- Luiz Gonzaga Nascimento da Silva, 55 anos, que garimpa desde os 12, afirma que as enchentes têm alagado completamente as áreas de várzea, destruindo plantações e até mesmo as casas. Ele e outros ribeirinhos usam as balsas como moradia alternativa durante o período das cheias.
- Dona Iassis do Carmo, mãe de garimpeiros, e outros moradores também confirmam que a frequência e intensidade das grandes cheias, a partir de 2014, levaram ao aumento da dependência familiar da atividade aurífera.

Em contrapartida à crescente dependência, os moradores relatam que a fiscalização e o combate ao garimpo, levado à completa ilegalidade a partir de 2017, tornaram-se intensos e agressivos, culminando nas recentes operações da PF que utilizam explosivos para destruir as balsas.
A dor da repressão: identidade, violência e perdas
Os relatos de Luiz Gonzaga, Isaías Lopes e outros ribeirinhos e professores contradizem a narrativa de que os garimpeiros seriam “invasores” ou “bandidos” ligados ao narcotráfico. Eles afirmam que os afetados são os próprios moradores locais, amazonenses, pais de família e, em alguns casos, indígenas da região.
- Gonzaga contesta: “Eles não estão expulsando ninguém. Cada uma pessoa dessa é moradora da margem do rio Madeira. Somos nós… Aqui não tem ninguém de outro estado não, é tudo daqui, amazonense.”
- Isaías Lopes, que perdeu sua balsa na Operação Boiúna (setembro passado), relata ter sido tratado “como bandido” e sofreu com a dor moral. Ele enfatiza: “Ninguém quer estar ali garimpando. Você acha que eu não queria estar lá em casa com a minha família… A gente faz porque precisa.” Ele perdeu o equipamento, seu único meio de trabalho, para sustentar a família após ter perdido a roça nas cheias.
- A professora Marina Viana Pinto é enfática: “Os garimpeiros não são bandidos, são trabalhadores das comunidades, pais dos nossos alunos.”
A violência das operações é um ponto de grande preocupação:
- Luiz Gonzaga e outros relatam o uso de explosivos (quatro bombas em sua balsa em 2023), sobrevoos baixos de helicópteros e aterrissagens em comunidades, causando pânico em crianças.
- Houve um caso de uma banana de dinamite não detonada deixada em uma balsa, que foi manuseada por crianças da comunidade sem saber do perigo.
- Daniel Leite, ex-garimpeiro e professor, descreveu a ação como “triste e cruel”, comparando-a a uma guerra onde “só um lado está armado”.
Impactos sociais e educacionais nas comunidades

As consequências das operações extrapolam a perda material e afetam diretamente a vida comunitária e a educação das crianças:
- Abalo Psicológico: As explosões, voos rasantes e a violência explícita causaram pânico nas crianças e profissionais da educação. A gestora escolar Alcilândia Lopes aponta que o abalo psicológico tem reflexo direto na queda dos índices de aprendizagem dos alunos, pois as operações ocorrem próximas a períodos de provas.
- Abandono Escolar Temporário: A coordenadora pedagógica Sebastiana Oliveira relata a ausência de alunos em sala de aula, pois precisam ajudar seus pais a desmontar e afundar ou resgatar pertences das balsas destruídas. O defensor Theo Costa observou que a destruição das balsas-moradias força crianças e adolescentes a passarem dias retirando pertences do fundo do rio.
- Dificuldade Financeira: Professoras como Sandra Regina Lopes e Bruna Ribeiro, cujos maridos tiveram equipamentos destruídos, relatam estar sobrecarregadas financeiramente, ficando com o ônus total de sustentar a família com seus salários, insuficientes para a demanda.
Ações da DPE-AM e reivindicações
A Defensoria Pública confirmou que os relatos de Manicoré são semelhantes aos colhidos em Humaitá, incluindo o receio de circular no rio com transporte escolar devido ao risco de novas ações com explosivos.
O GT “Teko Porã” (que significa “Vida Digna” em Tupi-Guarani) busca:
- Reparação de Danos: O defensor Ricardo Paiva afirmou que a DPE-AM construirá um plano de atuação para pedir a reparação de todos os danos identificados, visando reverter os valores em equipamentos para a população.
- Controle das Operações: A DPE-AM busca que haja controle nas operações para que os ribeirinhos não sejam tratados como “verdadeiros bandidos”.
- Medidas Legais: A Defensoria já protocolou ações no STJ e TRF1 para suspender o uso de artefatos explosivos (pedidos negados e recorridos) e, mais recentemente, uma recomendação ao Senado Federal para a criação de uma CPI para apurar possíveis excessos e abusos de autoridade.
- Organização do Garimpo: A agricultora Iassis do Carmo expressou o desejo de que o governo organize a atividade em cooperativas, sugerindo uma via de regularização social.
O Pe. João Nascimento, de Humaitá, cujo pai foi garimpeiro, endossou a defesa dos ribeirinhos, afirmando que o sustento de muitas famílias advém dessa atividade. Ele assinou uma nota de repúdio à operação que ocorreu durante festividades religiosas.
A DPE-AM reitera que os mais afetados são o garimpo artesanal e de pequena escala e aponta que as ondas de choque das explosões causam mortandade de peixes e a contaminação da água pelo vazamento de diesel das balsas destruídas. A Defensoria estima que mais de 1.500 bombas foram lançadas em operações contra balsas, com o aval da União.