
Por Juscelino Taketomi
O navio não era de metal, mas de luz solidificada, uma semente de um sistema solar moribundo. Ele rasgou a atmosfera terrestre sem cuspir fogo algum, rasgou com um silêncio profundo, um suspiro cósmico de alívio. Dentro, os últimos filhos de Vénus observavam.
Seu mundo, outrora um paraíso de oceanos nebulosos e florestas bioluminescentes, era agora um inferno de efeito estufa, um aviso gravado no céu sobre o preço da negligência. Eles eram os remanescentes, os guardiões de uma ciência que havia se voltado contra seus criadores.
Eram altos, de membros longilíneos e elegantes, adaptados a uma gravidade mais suave. Sua pele possuía um tom azul-cinza, uma proteção natural contra radiações que já não existiam mais.
As mãos, palmadas com quatro dedos, não eram primitivas, mas sim o ápice de uma evolução que privilegiava a precisão e a sensibilidade tátil para manipular energias sutis. Seu sangue, baseado em um elemento mais pesado que o nosso ferro, corria lento e frio, mas carregava a memória genética de um império estelar.
O comando coube a Huyustus, o Lóguos, cujo nome significava “aquele que lembra o caminho de casa”. Ele sentiu o peso do comando. Casa não existia mais. Este mundo rude, jovem e violento, com seu ar rarefeito e seus continentes brutos, seria seu novo lar.
O instrumento de navegação, uma esfera de cristal que sintonizava com a pulsação magnética dos planetas, indicou um ponto de poder singular: um lago colossal, pairando como um espelho quebrado no teto do mundo. O Lago Titicaca.
A aterragem foi suave. As portas do navio se abriram para uma solidão cósmica avassaladora, em vez de um desfile triunfal. O ar era fino, cortante, mas limpo. Sob um céu noturno de uma clareza dolorosa, Huyustus viu a Via Láctea e apontou para uma constelação familiar. “Vejam,” sussurrou, sua voz um som musical, “as Três Irmãs de Órion. Elas nos guiaram. Este é o lugar”.
E assim, Chucara, “A Casa do Sol”, nasceu. Não era uma cidade como as deste mundo primitivo. Conscientes da radiação solar e das intempéries, os venusianos construíram para a eternidade e para o interior.
O que surgiria na superfície milénios depois, e que os nativos chamariam de Tiahuanaco, era meramente o complexo industrial, os estaleiros de pedra, os observatórios. A verdadeira cidade era um labirinto subterrâneo de câmaras ressonantes, jardins hidropónicos iluminados por uma luz fria e artificial, e salas de controle onde mapas estelares eram projetados em hologramas de plasma.
Eles eram engenheiros da realidade. Suas ferramentas não eram martelos e cinzéis, mas dispositivos de sonicidade que amoleciam o andesito como se fosse argila, cortando-o com precisão nanométrica.
A Porta do Sol não era um portal, mas um complexo painel de controle calendárico e astronómico, mostrando os ciclos da Terra e a dança sincronizada de Vénus, Júpiter e das Plêiades.
A figura central, que os arqueólogos futuros chamariam de “Deus Sol”, era na verdade uma representação de Orejona, sua lendária progenitora que, segundo sua mitologia, havia primeiro colonizado Vénus eras antes. O “escafandro” em sua cabeça era um capacete de interface neural, as lágrimas estilizadas, os fluxos de dados.
Por séculos, floresceram. Eles sincronizaram a atmosfera, usando as pirâmides que construíram como ressonadores para atrair a umidade do grande lago e “fazer chover”, domando o clima hostil do altiplano.
Eles catalogaram a vida terrestre, criaram híbridos, e observaram os seres humanos primitivos que habitavam a região com uma curiosidade melancólica. Eram como crianças robustas, cheias de potencial, mas ainda adormecidas.
Mas o fantasma de seu próprio passado os assombrou. O mesmo orgulho científico que lhes permitiu fugir de Vénus tornou-se sua maldição. Em laboratórios profundos, buscavam uma fonte de energia definitiva para alimentar seu sonho de um novo império.
Queriam replicar o núcleo de uma estrela em miniatura, dominar o “ferro celestial”, uma energia que nós, hoje, chamaríamos de fusão nuclear.
E então, veio o Estridor. Foi primeiro um tremor silencioso, uma dissonância na música das esferas que seus instrumentos captavam. Depois, uma luz azulada e fantasmagórica que emanou das entranhas de Chucara, engolindo as sombras.
Não foi uma explosão vulcânica, mas um colapso de realidade localizada. O campo de contenção falhou. A radiação, uma espécie diferente e muito mais perversa do que a radiação natural, vazou como um veneno invisível.
Não houve fogo que caísse do céu, mas uma mudança que subiu da terra. A radiação não matou imediatamente. Ela corrompeu. Afetou o próprio código da vida. As faculdades mentais dos venusianos, tão dependentes de delicados equilíbrios eletro-bioquímicos, foram as primeiras a definhar.
A memória coletiva, bem mais precioso dos venusianos, tornou-se confusa. A esterilidade varreu a população como uma praga silenciosa. Os animais da região nasceram com mutações, patas entortadas, penas esbranquiçadas.
Huyustus, agora um líder de um povo condenado, assistiu ao ocaso de sua raça. A ciência que os trouxera até às estrelas agora os consumia pelo avesso. O “infinitamente pequeno”, o átomo que prometia a eternidade, devorava o “infinitamente presunçoso”. Antes que a escuridão intelectual os consumisse totalmente, ele ordenou a última tarefa.
Os poucos sábios que ainda mantinham lampejos de lucidez gravaram a sua história, seu conhecimento básico e um aviso solene no último objeto indestrutível que haviam criado: o friso da Porta do Sol. Não era um manual, era um epitáfio. Uma mensagem de dor para uma humanidade futura que pudesse um dia entender.
Os últimos sobreviventes, já enfraquecidos e mutantes, abandonaram a cidade subterrânea. Alguns, liderados por discípulos de Huyustus, migraram para norte. Levavam consigo tabuinhas de conhecimento, mapas estelares e a lembrança difusa de sua origem.
Séculos depois, ao chegarem às planícies do Egito, encontraram um povo robusto e receptivo. Os sacerdotes locais, embora incapazes de compreender a profundidade daquela ciência, absorveram seus fragmentos: a escrita linear, a astronomia precisa, a obsessão pela eternidade na pedra. As pirâmides de Gizé são, nesta saga, um eco pálido e grosseiro das estruturas ressonantes dos Andes.
Outros se misturaram aos povos nativos, e o mito da “raça branca e barbada” que vivia nas ilhas do Titicaca nasceu dessa fusão. Seu sangue diferente diluiu-se, seu conhecimento transformou-se em lenda.
O navio de luz, sem ninguém para mantê-lo, desintegrou-se lentamente. O silêncio retornou a Tiahuanaco. Apenas o vento, que sempre soprou, agora sussurrava entre as pedras ciclópicas uma saga de um povo que veio das estrelas, sonhou com um novo começo, e foi derrotado pelo mesmo demónio que assombra a nossa própria ambição: o preço do conhecimento sem a sabedoria moral e espiritual para contê-lo.
E a Porta do Sol permanece, sua mensagem mudamente gritando para o céu, aguardando o dia em que não a vejamos como um altar, mas como um espelho.