O novo alvo do ‘consórcio’

Ao mirar o governador Romeu Zema, a esquerda tenta antecipar o desgaste dos prováveis adversários que enfrentará nas urnas nas próximas eleições

Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, e Romeu Zema, governador de Minas Gerais | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Joédson Alves/Agência Brasil/Canal Gov/Arte Estado/Estadão Conteúdo

Por Silvio Navarro

Em 2019, pouco tempo depois da eleição de Jair Bolsonaro, os governadores dos Estados do Nordeste decidiram montar um consórcio para buscar investimentos e fazer política em conjunto. Dos nove integrantes, três lideraram o bloco: Flávio Dino (Maranhão), Rui Costa (Bahia) e Camilo Santana (Ceará). Hoje, todos eles são ministros do governo Lula. O consórcio tem dois escritórios, com endereços em Brasília e Salvador, e funciona até hoje. Jamais foi questionado por políticos nem pela imprensa.

Neste ano, os governadores do Sudeste e do Sul do país decidiram se unir com a mesma finalidade, já que são filiados a partidos que fazem oposição a Lula. Ou seja, querem defender os interesses, especialmente econômicos, da população que os elegeu e que representa 57% do eleitorado. Mas a esquerda decidiu que esse consórcio sulista deve ser proibido.

A polêmica começou com uma entrevista do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), ao jornal O Estado de S. Paulo. Parte da confusão ocorreu por causa da manchete malfeita: “Zema anuncia frente Sul-Sudeste contra o Nordeste e quer direita unida contra a esquerda”. O título foi substituído na versão on-line por: “Zema anuncia frente para protagonismo do Sul-Sudeste e quer direita unida contra a esquerda”.

Romeu Zema | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Quem leu a entrevista no domingo, 6, se deparou com a seguinte fala: “Temos 256 deputados — metade da Câmara —, 70% da economia e 56% da população do país. Não é pouco, né? Já decidimos que, além do protagonismo econômico que temos, nós queremos — o que nunca tivemos — protagonismo político”. O governador ainda detalhou: “Outras regiões do Brasil, com Estados muito menores em termos de economia e população, se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos”. O que há de separatista nessas frases? Absolutamente nada.

A frase mal reproduzida pelo jornal foi imediatamente aproveitada pelo PT e seus satélites para atacar Romeu Zema. O ministro Flávio Dino, frequentador do Twitter, foi um dos primeiros a disparar. “É absurdo que a extrema direita esteja fomentando divisões regionais. Precisamos do Brasil unido e forte. Está na Constituição, no artigo 19, que é proibido ‘criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si’. Traidor da Constituição é traidor da Pátria, disse Ulysses Guimarães.”

Outras reações partiram da arquibancada histérica de sempre: Gleisi Hoffmann (presidente do PT), o senador Randolfe Rodrigues (AP), deputados de esquerda e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), que é mineiro. O atual presidente do consórcio, o governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB), aliado de Dino, escreveu uma nota oficial imensa. “Ao defender o protagonismo do Sul e Sudeste, Zema indica um movimento de tensionamento com o Norte e o Nordeste, sabidamente regiões que vem sendo penalizadas ao longo das últimas décadas dos projetos nacionais de desenvolvimento”, diz o texto.

Nota Oficial do Consórcio Nordeste pic.twitter.com/0h7LJTFXhy
— João Azevêdo (@joaoazevedolins) August 6, 2023

Consórcio permitido

O que é um consórcio de Estados? A resposta é: um instrumento jurídico para legalizar compras em sociedade pelos entes da federação e pressionar Brasília — o Congresso Nacional e o governo federal — por recursos do Orçamento da União, conhecidos como “convênios”. Duas leis amparam seu funcionamento: a Lei nº 11.107/2005 e o Decreto nº 6.017/2007. Basicamente, os documentos dizem o seguinte:

“Consórcio Público, pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da federação, para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos.”

No caso do Nordeste, o bloco ficou conhecido durante a pandemia. Os Estados decidiram comprar respiradores juntos. Por alguma razão desconhecida, os governadores de esquerda incluíram a cidade de Araraquara, no interior de São Paulo. A distância entre o município, administrado pelo petista Edinho Silva, e Salvador, sede do consórcio, é de 2 mil quilômetros, ou 26 horas por via terrestre.

A compra de 300 respiradores se tornou o marco da corrupção na crise da covid-19. Os equipamentos, adquiridos sem licitação por R$ 48 milhões, nunca foram entregues. A fabricante era uma empresa de produtos derivados de maconha — como o nome estava em inglês (“Hempcare”), o então governador baiano, Rui Costa, disse que não se deu conta. “Eu não tenho pleno domínio da língua inglesa”, afirmou o atual chefe da Casa Civil de Lula à Polícia Federal. Como seu amigo Flávio Dino hoje controla a PF, ficou por isso mesmo. O dinheiro dos pagadores de impostos não foi rastreado. O escândalo acabou batizado de “Covidão”.

Consórcio proibido

Não é preciso ser especialista em dados para entender que as regiões Sudeste e Sul, com a soma do motor do agronegócio nos Estados do Centro-Oeste — principalmente Mato Grosso, que, se fosse um país, seria o terceiro maior produtor de soja do planeta — carregam a economia. Também concentram o maior eleitorado — só São Paulo tem 34 milhões de votos — e metade das cadeiras na Câmara dos Deputados.

Outro ponto nesse tabuleiro político é a falta de quadros e de relevância do PT fora do Norte e Nordeste. No Rio de Janeiro, a sigla não tem peso há décadas. Em São Paulo, Fernando Haddad perdeu três eleições seguidas

Aqui entra o componente político que joga luz na gritaria da esquerda contra a união dos governadores do Cone Sul. Pelo menos dois deles são potenciais candidatos à Presidência da República se a inelegibilidade de Jair Bolsonaro for mantida pela Justiça Eleitoral. Reeleito no primeiro turno, Romeu Zema é um deles. O outro é Tarcísio de Freitas (Republicanos), apadrinhado por Bolsonaro. O governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB), talvez o mais distante do eleitorado conservador, já tentou se candidatar ao Palácio do Planalto no ano passado. No Centro-Oeste, o goiano Ronaldo Caiado (UB) também quer concorrer.

Do outro campo político, há uma legião de ex-governadores do Norte e do Nordeste alojada em ministérios: Flávio Dino, Rui Costa, Camilo Santana, Renan Filho (Transportes), Wellington Dias (Desenvolvimento Social), Waldez Góes (Desenvolvimento Regional), além do representante do clã Barbalho, Jader Filho (Cidades), irmão do governador do Pará. Todos os líderes do governo no Congresso são nordestinos.

 #PIB Per capita por estados do Brasil, (ajustado a população Censo 2022) pic.twitter.com/atkNdcdPN8
— Brasilemmapas 🇧🇷 (@brasilemmapas) August 1, 2023
Outro ponto nesse tabuleiro político é a falta de quadros e de relevância do PT fora do Norte e Nordeste. No Rio de Janeiro, a sigla não tem peso há décadas. Em São Paulo, Fernando Haddad perdeu três eleições seguidas — reeleição para a prefeitura, a disputa presidencial e o governo; em Minas Gerais, Fernando Pimentel jogou o Estado na sua pior crise fiscal da história; no Sul, Gleisi Hoffmann teve de se conformar com uma vaga de deputada, porque não tem votos para o Senado; e o gaúcho Olívio Dutra perdeu a disputa no ano passado para Hamilton Mourão. O resultado é que hoje o partido do presidente da República depende da garupa de aliados, como o Psol de Guilherme Boulos, para entrar nas eleições municipais do ano que vem.

É aqui que entra em cena um terceiro “consórcio”: o da velha imprensa. A fala de Zema rendeu uma avalanche de manchetes ao longo de toda a semana. Os principais jornais publicaram editoriais contra o mineiro. Alguns colunistas já decretaram sua morte política e sepultaram a pré-candidatura, que sequer foi assumida na entrevista. “Sempre falo que eu prefiro ser lembrado como um ótimo, bom governador, do que ser mais um presidente. Não tenho nenhuma pretensão. Não sei o que será em 2026. Se depender de mim, desejaria apoiar um bom nome.”

A disputa entre o consórcio permitido e o consórcio proibido mostra como o país está dividido desde 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita por um fio. Mas, para além da tempestade de xingamentos — xenofobia, fascismo, elites, segregação —, a única intenção da esquerda nessa confusão — inclusive nas redações — é antecipar o desgaste dos prováveis adversários nas urnas. Zema é o alvo da vez, mas ocorreu o mesmo com o paulista Tarcísio de Freitas na operação policial contra o crime organizado na semana passada. Os políticos que fazem oposição a Lula — e que não repudiam o “bolsonarismo” — que se cuidem.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-177/o-novo-alvo-do-consorcio/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.