O julgamento da História não basta

O artigo aponta os efeitos nefastos do tratamento precoce, incluindo a proxalutamida da Samel no Amazonas

Por Malu Gaspar

Embora escasso em surpresas, o discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU trouxe um trecho que chamou a atenção. Ao fazer uma defesa enfática do “tratamento precoce” contra a Covid-19 (leia-se cloroquina), apoiando-se na recomendação do “nosso Conselho Federal de Medicina”, Bolsonaro cobrou os líderes presentes:

— Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A História e a ciência saberão responsabilizar a todos.

Bom, se o presidente não entende, não há o que se possa fazer. O que a ciência tem dito é que o “tratamento precoce” não tem eficácia contra a Covid-19. Como disse a microbiologista Natalia Pasternak na CPI da Covid, a cloroquina só não foi testada nas emas. Tudo o mais foi experimentado, infelizmente sem resultados. Mesmo o governo de Donald Trump descartou seu uso. No resto do mundo, essa discussão já foi superada faz tempo.

No Brasil, porém, o assunto continua vivo e está cada vez mais claro que a obsessão pelo “tratamento precoce” e sua transformação em política de Estado abriram espaço para experimentos com espaço garantido nos tribunais que julgam crimes contra a humanidade. Enquanto Bolsonaro e sua comitiva se regalavam em Nova York com pizzas, picanhas bem passadas e visitas às lojas da Apple, a “mídia” e a CPI da Covid avançavam na investigação sobre o que de fato aconteceu no hospital paulistano Sancta Maggiore, da Prevent Senior, durante a pandemia.

A Prevent Senior é aquele plano de saúde que distribuiu o kit Covid em massa aos associados, até para quem não tinha a doença, e obrigou os médicos a prescrever mesmo sem indicação clínica. Os próprios médicos afirmaram ter recebido ordens de adulterar os prontuários para o tratamento parecer mais eficaz, além de terem sido proibidos de contar aos doentes que remédios eles tomavam. Segundo as denúncias, nove pessoas morreram durante o estudo com 600 pacientes, mas só duas mortes por Covid foram contabilizadas.

No norte do país, no Amazonas, outro grupo conduziu “estudo” com a proxalutamida — um bloqueador hormonal em fase de testes, que nunca foi usado regularmente em nenhum tratamento. Liderado pelo endocrinologista Flávio Cadegiani e patrocinado pela rede de hospitais privada Samel e por um obscuro laboratório dos Estados Unidos, esse grupo pediu aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para um ensaio em Brasília, mas depois decidiu aplicar a “proxa” por conta própria em hospitais de sete cidades amazonenses.

Os doutores prometiam que a nova medicação curaria a Covid-19 em cinco dias. Mas, quando isso não acontecia, também não deixavam que se transferisse o paciente de hospital. Segundo o depoimento de familiares, a impressão que se tinha era que estavam preocupados unicamente em produzir um ensaio clínico de resultados vistosos — o que de fato foi feito, com a divulgação de números tão espetaculares quanto suspeitos. O mesmo experimento foi repetido no hospital militar de Porto Alegre de forma totalmente clandestina. Tanto os resultados da Prevent Senior quanto os do Amazonas foram celebrados com estridência por Bolsonaro em suas redes sociais.

Durante o estudo no Amazonas, 200 pessoas morreram de Covid-19. O número de mortes no hospital de Porto Alegre não foi divulgado. Quantas poderiam ter sido evitadas se não se tivesse insistido nesses estudos sem controle? As substâncias em teste tiveram alguma relação com as mortes? Nunca saberemos, porque os dados não são confiáveis, e os pesquisadores nunca detalharam as informações dos voluntários às autoridades competentes.

O que é possível afirmar com certeza é que essas iniciativas só foram tão longe porque quem tinha a função de pará-las não o fez. Porque o Conselho Federal de Medicina, que deveria zelar pela ética médica, empenhou os maiores esforços não para proteger os pacientes, mas sim os macabros doutores brasileiros.

Porque as autoridades reguladoras, como a Conep, fingiram quanto podiam não ver o elefante passar sob seu nariz e só agiram mesmo quando já não dava mais para evitar.

E porque, neste Brasil que acredita em mitos, é mais fácil culpar um ente abstrato — a História, a ciência, a mídia — do que apurar responsabilidades concretas e aplicar as punições legais a quem de fato as merece, sejam eles pedros, jaires ou flávios.

É o que se espera que seja feito. Porque a História certamente responsabilizará a todos, mas isso ainda pode ser muito pouco.

Fonte: O Globo

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