
Por J. R. Guzzo (*)
O mundo político do Brasil terá de tomar uma decisão que já deveria ter tomado há muito tempo e que a cada dia fica mais urgente. Terá de escolher, sim ou não, se aceita continuar vivendo sob o regime ilegal comandado há cinco anos pelo ministro Alexandre de Moraes, ou se vai voltar à democracia estabelecida com a Constituição de 1988. O ministro, a um momento qualquer neste período, percebeu que tinha dado um golpe branco. Abriu um inquérito penal que a lei lhe proíbe, mas que foi aplaudido como um ato de heroísmo pela esquerda, pela mídia e por malfeitores políticos — e por causa disso se viu num cargo que não existe, o de Czar Nacional da Polícia Política do Estado, que não está sujeito ao cumprimento de nenhuma lei nem à prestação de contas por nada do que faz. Na teoria, ele age assim porque exerce a função de corregedor-geral do “enfrentamento” aos “atos antidemocráticos” — e essa tarefa, segundo o STF, seria mais importante que o ordenamento legal em vigor no Brasil. Tem sido um desastre — e as denúncias que acabam de ser feitas pelo jornalista Glenn Greenwald na Folha de S.Paulo só tornam tudo pior do que já está. (Leia a matéria de capa desta edição, de Silvio Navarro.)
Se houve a esperança, um dia, de que Alexandre de Moraes aceitasse alguma espécie de autorregulamentação para si próprio, essa esperança obviamente foi para o espaço. Moraes, a cada dia, se torna mais Moraes. O resultado concreto é que o país está assistindo em silêncio à destruição do seu sistema legal pela ação de um homem só. Basicamente, o Brasil tem medo de Moraes — e do seu poder, sem limites, de prender, multar, colocar instrumentos de tortura nas pessoas, indiciar, processar, condenar, calar, confiscar contas bancárias, sem que haja ninguém, no mundo inteiro, capaz de contrariar qualquer decisão que tome. Está chegando a hora de fazer a escolha. Se deixar assim, vai ser cada vez mais assim — sai o Brasil, fica o ministro. Se for dado um “basta”, o ministro pode ficar — mas a lei volta. Esse “basta” foi enfim acenado com educação, mas clareza, por um político que está na corrente sanguínea da esquerda brasileira — o ex-ministro da Justiça, da Defesa e do próprio STF nos governos Fernando Henrique, Lula e Dilma, Nelson Jobim.
É claro que muita gente de coragem e com senso de decência, na oposição e entre os brasileiros de bem, tem denunciado a insensatez de um regime onde o mundo oficial faz de conta que é normal, ou “novo normal”, obedecer cegamente a um tipo de Nicolás Maduro ou Vladimir Putin que comanda o Poder Judiciário. Mas Nelson Jobim, embora não tenha mais nenhum cargo oficial, continua sendo Nelson Jobim; não dá para fazer de conta que ele não existe, ou não disse o que disse. O fato é que o próprio campo de Moraes está dizendo que o rei está nu. Não é mais só Elon Musk, ou os advogados da multidão de perseguidos políticos do ministro, ou a Revista Oeste — são eles mesmos. O que parece estar em formação é a consciência de que o STF condenou a si próprio e ao sistema de Justiça como um todo a se alimentar, por um prazo sem data de vencimento, de um fruto envenenado. Esse veneno é a ficção de que o Brasil está sob a ameaça permanente de um golpe de Estado da “extrema direita” — e, para se defender disso, está valendo tudo.
A pedra fundamental desse processo foi colocada em março de 2019, logo depois de Jair Bolsonaro assumir a Presidência, quando Moraes, a pedido do ministro Dias Toffoli, abriu um inquérito criminal fora da lei para proteger a reputação pessoal do próprio Toffoli. Era uma necessidade da época, disfarçada de combate a “fake news”, “atos antidemocráticos” e “ataques ao Supremo”. A necessidade passou, porque nunca mais se falou de empreiteiras e de Toffoli numa mesma frase, mas o inquérito ilegal jamais foi fechado. Moraes, por força dele, viu-se autorizado a agir dentro de uma Constituição e um Código Penal criados e aplicados por ele mesmo. Desde então não parou mais. Parar por quê, se o STF aprova tudo o que ele faz, um exército de jornalistas bate palmas, a OAB e o resto da “sociedade civil” se calam, e a esquerda nacional o considera o novo Che Guevara das lutas populares do Brasil-2024? De lá para cá, a “defesa da democracia” de 2019 se transformou em “combate ao golpe de 8 de janeiro” de 2023. É o grande alicerce atual do regime de exceção em vigor no Brasil.

Trata-se, também, de uma doença degenerativa em que as células doentes não param de se multiplicar. O desvio criado cinco anos atrás foi gerando cada vez mais subdesvios, e hoje não há limite conhecido para a ilegalidade que se fantasia como “decisões judiciais”. Nunca houve ameaça nenhuma à democracia nas suspeitas levantadas em relação ao ministro Toffoli cinco anos atrás, e não houve golpe nenhum em janeiro de 2023. Mas, enquanto forem sustentadas essas duas mentiras, Moraes, o STF e o governo Lula, que apoia e ao mesmo tempo é apoiado por ambos, têm carta branca para continuar destruindo a ordem jurídica no Brasil. A paisagem, para qualquer lado que se olhe, é de terra arrasada. Como uma linha de montagem está programada para só produzir peças iguais, cada decisão absurda só consegue conduzir a outra decisão absurda. O exemplo mais recente da série é o caso da morte e da morte dos direitos legais de Filipe Martins, ex-assessor do ex-presidente Bolsonaro, como em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água.
Martins ficou preso durante seis meses por ordem do ministro Moraes, sob a acusação de ter viajado para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro de 2022 — aparentemente, segundo as acusações, para darem lá o golpe de Estado que não tinham conseguido dar aqui. É óbvio que um piro desses, a menos que seja deletado do sistema, só pode gerar um outro piro, e mais outro, e assim por diante. O ônus da prova, no Código de Processo Penal de Moraes, foi transferido do acusador, como estabelece o Direito Universal, para o acusado. Tudo bem: Martins provou com comprovantes de passagem aérea, recibos do Uber, geolocalização do seu celular por satélite e aval do Departamento de Imigração americano que tinha ido para Curitiba, e não para os Estados Unidos. Continuou na cadeia. Na semana passada, enfim, foi solto, mas continua preso. Por ordem de Moraes, tem de usar tornozeleira durante o tempo que o ministro quiser — ou seja, só trocou de cela.

Por que isso? Se a polícia e o “inquérito do golpe” não conseguiram prova nenhuma durante os seis meses inteiros em que Martins esteve à sua disposição na cadeia, por que raios iriam conseguir agora que ele está preso em casa? É onde o Brasil foi parar com a “defesa da democracia” do STF: o acusado pode ficar preso, atrás das grades ou algemado a uma tornozeleira, enquanto a polícia não encontrar a prova que quer, ou quando der na veneta do ministro Moraes. Há alguma outra descrição possível para o que está sendo feito com Filipe Martins? É claro que não há. É claro, também, que isso só acontece porque a ordem jurídica e o sistema político do Brasil de hoje estão obrigados a obedecer à ficção criada por Moraes e pelo governo Lula, e encampada com indignação pela mídia, de que houve um “golpe” no quebra-quebra do dia 8 de janeiro — o “Pearl Harbor” da ex-ministra Rosa Weber, em que a arma mais perigosa foi um estilingue. Se essa demência vale, então tudo vale.
O Brasil está correndo o risco de aceitar como normal que uma manicure seja perseguida pela Suprema Corte de Justiça da nação por pichar com batom uma estátua em Brasília
A realidade, tal como é relatada no artigo de capa desta edição, tem a tendência de ficar cada vez mais clara à medida que o tempo passa. Ou os que têm responsabilidades perante o país colocam um fim na intoxicação geral que o Brasil está sofrendo por causa do golpe imaginário do dia 8 de janeiro, em razão do qual se comete todo tipo de violação à lei, ou a desordem judicial vai tornar o país cada vez mais selvagem. Haverá mais, e não menos, mortes de presos a quem Alexandre de Moraes nega o direito de receber tratamento médico adequado em hospital — como o de Cleriston Cunha. Ele morreu sem assistência no pátio da Penitenciária da Papuda, mesmo com atestados médicos recomendando seu internamento urgente e o pedido do próprio Ministério Público. É, comprovadamente, caso de morte de um cidadão que estava sob a guarda e a responsabilidade do Estado — a repetição, no governo Lula e nos cárceres do STF, da história de Vladimir Herzog.

É esse mesmo padrão de ilegalidade que leva a escândalos como o do ex-deputado Daniel Silveira, que nunca poderia ter sido preso, por estar em pleno mandato de deputado federal. Mas foi preso, condenado, viu o seu indulto ser anulado, pagou multa de R$ 250 mil, cumpriu o tempo de pena que tinha de cumprir e continua preso — a PGR, que hoje serve como serviço de estafeta do ministro Moraes, alega que ele não pagou a “correção monetária”. Num país onde a alta Justiça manda devolver iates, jatinhos e casas de praia a traficantes de drogas, qual é o respeito que o STF pode esperar com o tratamento que Moraes impõe ao ex-deputado? Vão continuar, também, as condenações a até 17 anos de prisão para participantes de uma baderna em Brasília — e a mesma passividade da Justiça diante das invasões violentas de prédios públicos por baderneiros de esquerda. Vai continuar havendo a interferência aberta de Moraes, do STF e da polícia eleitoral do TSE nas eleições brasileiras.
O Brasil está correndo o risco de aceitar como normal que uma manicure seja perseguida pela Suprema Corte de Justiça da nação por pichar com batom uma estátua em Brasília — ou que o ministro Moraes negue a retirada temporária da tornozeleira eletrônica de uma ré, vítima de câncer, que precisa fazer exames de tomografia e ressonância magnética. Permite que Moraes se utilize abertamente do STF e da Polícia Federal para continuar perseguindo desafetos eventuais com quem teve um bate-boca de sala no Aeroporto de Roma. Depois de 13 meses, nem ele, nem a polícia, nem os peritos conseguiram achar um fiapo de prova contra os acusados; a única peça de evidência são os vídeos do serviço de segurança do aeroporto, que não mostram agressão nenhuma e continuam sob sigilo do STF. O caso permanece em aberto e os advogados não podem defender seus clientes, porque não têm acesso às fitas secretas. Pela primeira vez desde o regime militar, há exilados políticos brasileiros refugiados no exterior.
A permissão para o STF continuar sua guerra aos direitos individuais escritos na Constituição é o golpe fictício do 8 de janeiro. Enquanto essa metástase não for interrompida, o Brasil continuará sendo um país fora da lei.
(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-230/hora-da-escolha/











