Entre a cruz e a espada

O contencioso comercial com os Estados Unidos começa a produzir efeitos e a cada dia que passa a solução vai se tornando mais distante

Por Nuno Vasconcellos (*)

Há um bom tempo que não se fala em outro assunto no Brasil — e quanto mais a confusão avança, mais difícil se torna prever como ou quando ela acabará. O assunto em questão, como não poderia deixar de ser, é o contencioso comercial, diplomático e jurídico entre o Brasil e os Estados Unidos. Em vez de arrefecer, a cada dia, um novo empurrão parece distanciá-lo um pouco mais da solução. Foi exatamente isso que aconteceu na semana passada, a partir de uma medida inoportuna, tomada pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sem que ninguém esperasse, Dino expediu uma decisão que, na prática, revoga os efeitos da Magnitsky no Brasil. Essa lei dos Estados Unidos, como todo brasileiro já está cansado de saber neste momento, foi criada pelo ex-presidente Barack Obama para punir pessoas que, a juízo de Washington, cometem atos que atentam contra os direitos humanos. Entre esses direitos se inclui a liberdade de expressão, que os americanos consideram sagrada desde 15 de dezembro de 1791, data em que foi promulgada a célebre primeira emenda à Constituição do país.

A Lei Magnitsky, como também já foi dito, mas não custa repetir sempre que for necessário, se aplica única e exclusivamente aos Estados Unidos e deve ser cumprida por indivíduos e empresas que operam ou que têm interesse em continuar operando no país. Ocorre, porém, que, pela dimensão e pelas ramificações globais da economia americana e pelo poder de atração de seu mercado multitrilionário sobre qualquer companhia que pretenda se expandir, os efeitos da lei acabam ultrapassando as fronteiras americanas e se espalhando pelo mundo.

Num cenário como esse, os órgãos de fiscalização e controle do mundo inteiro, sobretudo dos países mais ricos e dinâmicos, em vez de considerar as punições previstas pela Magnitsky e outras leis parecidas como uma afronta à sua soberania, fazem de tudo para se adaptar às normas de funcionamento estabelecidas pelos Estados Unidos. Na semana passada, a pedido desta coluna, um alto executivo de uma instituição que opera na City de Londres — um dos principais centros financeiros do mundo — lembrou que uma legislação própria do Reino Unido, desde 2020, aplica sanções com base nos mesmos princípios da Magnitsky. Conforme a lei britânica, qualquer indivíduo ou empresa que tenha sido sancionado pela lei não pode conduzir negócios com empresas locais.

“As empresas britânicas têm a obrigação legal de congelar ativos e se abster de fornecer fundos ou serviços” aos sancionados. Essa proibição é “rigorosamente monitorada pelo OFSI”. Esta é a sigla em inglês para o Escritório de Implementação de Sanções Financeiras do Tesouro de Sua Majestade.

O banqueiro ainda completou que “quaisquer decisões judiciais brasileiras que afirmem a inaplicabilidade das disposições ‘Magnitsky’ internamente não afetam o quadro do Reino Unido”. E que o “regime de sanções do Reino Unido se aplica de forma independente e tem efeito legal direto sobre todas as pessoas e empresas do Reino Unido, independentemente de decisões estrangeiras”. Ou seja, que alguma empresa brasileira que seja impedida de se relacionar com as empresas dos Estados Unidos também se verá, mais cedo ou mais tarde, impedida de operar no Reino Unido.

Fato consumado

Seja como for, empresas e indivíduos que operam e pretendem continuar operando no mercado americano simplesmente estão impedidos de manter relações comerciais com qualquer sancionado pela Magnitsky — a menos, é claro, que renunciem ao direito de ter acesso ao maior e mais rico país do mundo. Esse detalhe, a bem da verdade, jamais havia preocupado a quem quer que fosse no Brasil até o momento em que o país foi sugado para o olho do furacão com a inclusão do nome do ministro Alexandre de Moraes, do STF, entre os atingidos pela lei.

Ninguém está aqui para discutir se a inclusão do ministro entre os sancionados foi justa ou injusta. Nem para debater os critérios utilizados pela Casa Branca para punir Moraes. Muito menos para discutir se as ordens que, a partir do Brasil, ele deu a cidadãos e empresas americanas em território americano configuram, de fato, uma afronta aos direitos humanos a ponto de estender a um ministro da Suprema Corte brasileira o mesmo tratamento dispensado a ditadores, terroristas e traficantes internacionais que já sofreram os efeitos da lei e se tornaram párias aos olhos do sistema financeiro mundial.

O que interessa, neste caso, é saber que a inclusão do nome do ministro na lista é um fato consumado. E, enquanto seu nome permanecer entre os sancionados, os bancos e outras empresas brasileiras que se relacionam com ele precisam estar cientes do que pode vir a acontecer com eles. Este é o ponto: essas empresas estão, neste momento, entre a cruz e a espada.

Se continuarem dando a Moraes o mesmo tratamento privilegiado que sempre oferecem a qualquer autoridade, correm o risco de afrontar a legislação americana e sofrer punições que, no limite, podem alijá-las do maior mercado do mundo. O banco francês BNP Paribas, por exemplo, foi multado em quase US$ 9 bilhões em 2014 por violar sanções americanas aplicadas contra Cuba, Irã e Sudão.

Acontece, porém, que os bancos brasileiros têm interesse em manter bom relacionamento com o maior mercado do mundo. Ainda que seja para não perderem acesso aos correspondentes internacionais — como J.P. Morgan, Bank of America, Wells Fargo ou Citibank — que precisam ter para realizar qualquer transação em dólares. Na hipótese de, em nome desse acesso, eles virarem as costas para Moraes, correm o risco de desagradar ao Judiciário ou àqueles que consideram a movimentação dos Estados Unidos uma intromissão indevida no Brasil. E, de acordo com os critérios vingativos que têm contaminado as decisões institucionais por aqui, virem a sofrer punições severas.

A presença de Moraes na lista de sancionados, de qualquer forma, é um fato consumado. Além de causar constrangimento a um país que não era acusado de violador de direitos humanos desde o fim dos governos militares, em 1985, isso elevou a temperatura da relação entre o Brasil e os Estados Unidos — que, desde a volta do presidente Donald Trump ao poder, em janeiro deste ano, nunca parou de subir. Na verdade, mesmo antes de retornar à Casa Branca, Trump já vinha trocando farpas com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto as chamadas big techs e outras empresas americanas até a medula vinham sendo mantidas sob a mira de Moraes.

Reação amadora

Dias antes das eleições presidenciais americanas, no final do ano passado, numa entrevista à TV francesa em que manifestou sua “torcida” pela democrata Kamala Harris, Lula afirmou que a vitória de Trump significaria “o fascismo e o nazismo voltando com outra cara”. No Brasil, onde ofensas como essas se tornaram fáceis na boca da esquerda militante, que vê sinais de fascismo ou nazismo nas ações de qualquer um que ouse contrariá-la, isso talvez não pareça ter importância. Nos Estados Unidos, se referir a alguém como nazista é considerado uma agressão — e foi assim que as palavras do presidente brasileiro foram recebidas pela equipe de Trump.

Dessa maneira, de rusga em rusga, a temperatura das relações entre os dois países, que acumulam 201 anos de convivência diplomática, se elevou e se aproximou do ponto de ebulição no início de julho, quando Trump impôs as alíquotas de 50% sobre os produtos brasileiros importados pelos Estados Unidos. Na carta em que anunciou a decisão, Trump mencionou o ex-presidente Jair Bolsonaro, que, segundo ele, vem sendo vítima de uma “caça às bruxas” por parte da Justiça brasileira. E fez uma série de acusações sem pé nem cabeça — como a de que o Brasil acumula superávit com os Estados Unidos, quando o que acontece é justamente o contrário.

O certo é que, independentemente do que Trump tenha dito ou deixado de dizer, o governo brasileiro, por decisão própria, jamais escondeu que suas movimentações no mercado estão contaminadas por uma postura antiamericana até a raiz dos cabelos. Nesse ambiente, a reação de Brasília à carta de Trump foi, no mínimo, amadora.

Mesmo manifestando a intenção de negociar a redução das alíquotas de 50%, que, de fato, são indecentes e não refletem a realidade do comércio entre os dois países, o Planalto elevou as críticas que nunca deixou de fazer a Trump. E as recheou com manifestações de defesa da soberania nacional, que nunca esteve em causa, e com críticas ao “imperialismo”. Até aí, a surpresa é zero.

Não é segredo para ninguém que no atual governo, sob a batuta de Celso Amorim e de Mauro Vieira — que tocam a diplomacia nacional com maturidade de estudantes secundaristas —, o Brasil parece ter virado as costas para seus velhos parceiros ocidentais. E, na mesma medida, se atirou nos braços da China, da Rússia, do Irã e de outros países que têm em comum o ódio aos Estados Unidos.

Da mesma forma que não interessa, neste texto, avaliar se há ou deixa de haver justiça nas sanções impostas a Moraes, mas apenas admitir que elas existem e avaliar suas consequências, também não interessa discutir os motivos que levaram Trump a apontar o dedo em direção do Brasil e transformá-lo em vítima preferencial de suas sanções. Isso também é um fato consumado.

Há um exagero evidente na decisão do presidente dos Estados Unidos, que tenta vincular a política comercial entre os dois países às decisões que vêm sendo tomadas pela Justiça em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas aqui não interessa falar disso nem das razões alegadas para que Moraes e outros sete ministros da corte tivessem cancelados seus vistos de entrada nos Estados Unidos. Isso é para ser tratado em outro momento.

O que interessa aqui é que, independentemente das razões que colocaram o Brasil na mira da maior potência econômica e geopolítica do mundo, a decisão de impor sanções ao Brasil encontrou os canais de diálogos entre os dois países completamente obstruídos pelo desmazelo diplomático da dupla Amorim e Vieira. Afinal, por menos que esses dois gostem dos Estados Unidos e por mais que cubram de salamaleques e rapapés os principais inimigos do Ocidente, o comando do Itamaraty jamais poderia ter sido negligente diante da importância comercial dos Estados Unidos para o Brasil.

Falta de gente

Não se trata de abaixar a cabeça, mas de ser pragmático. Ao invés de dirigir pirraças frequentes à Casa Branca e seus aliados, como vinha fazendo antes da situação azedar de vez, o Brasil tinha, sim, a obrigação de manter desimpedidos os canais de diálogo com Washington — nem que fosse apenas para zelar pelo comércio bilateral que, no ano passado, somou US$ 81 bilhões. É isso que, por sinal, sempre fizeram os governos de países latino-americanos como Argentina, Chile e México. Mesmo nos momentos em que a orientação ideológica de seus presidentes não coincidia com a dos governos dos Estados Unidos, eles sempre fizeram questão de manter diálogo aberto com o Departamento de Estado.

O fato é que as sanções americanas, alimentadas pelas tarifas de 50%, já estão produzindo efeitos negativos no Brasil. Na semana passada, empresas exportadoras que atuam em setores como os de madeira processada, calçados e armamentos concederam férias coletivas a seus funcionários e serão obrigadas a tomar medidas mais drásticas caso os dois governos não encontrem logo uma solução para o impasse comercial.

A verdade, porém, é que as negociações não aconteceram até agora e, a despeito do empenho do vice-presidente Geraldo Alckmin, escalado por Lula para se entender com o governo americano em torno das tarifas, não deverão avançar tão cedo. E isso não se deve a obstáculos de natureza ideológica, conforme observou na semana passada um brasileiro que tem trânsito livre em Washington (e que não é o deputado Eduardo Bolsonaro nem o jornalista Paulo Figueiredo, que têm se apresentado como os únicos compatriotas recebidos por autoridades americanas).

No final das contas, faltam, no âmbito do Departamento de Estado e do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, profissionais graduados em quantidade suficiente para conduzir todas as negociações bilaterais em que o governo americano se envolveu desde a posse de Trump. Isso mesmo: os negociadores brasileiros não têm sido recebidos em certa medida porque, neste exato momento, seus correspondentes americanos estão assoberbados, com as agendas tomadas por compromissos com outros países.

A equipe de negociadores americanos, nos últimos meses, já concluiu acordos com o Reino Unido, Vietnã, Indonésia, Filipinas e Japão. Além disso, chegou a um acerto preliminar com a China. E, também, tem avançado na negociação com a Argentina de um tratado de livre comércio que pode, inclusive, abalar os alicerces do Mercosul.

Não é só. Assim como fez com o Brasil, Trump também elevou de forma unilateral as tarifas comerciais de África do Sul, Argélia, Bangladesh, Bósnia e Herzegovina, Brunei, Camboja, Canadá, Cazaquistão, Coreia do Sul, Iraque, Laos, Líbia, Malásia, México, Mianmar, Moldávia, Sérvia, Sri Lanka, Tailândia, Tunísia e, por último, mas não menos importante (last, but not least), União Europeia. Todos esses já abriram ou aguardam na fila para negociar com o governo americano. Num cenário como esse e devido ao afastamento deliberado que vinha mantendo em relação aos Estados Unidos, o Brasil terá que esperar mais do que os outros para ter suas demandas tarifárias discutidas em detalhe com os negociadores americanos.

Se correr, o bicho pega

As relações comerciais e diplomáticas do Brasil com os Estados Unidos, como se vê, já estavam diante de obstáculos comerciais e diplomáticos em quantidade suficiente no momento em que o ministro Flávio Dino resolveu tomar uma decisão que, embora não tenha diretamente a ver com os efeitos da Lei Magnitsky no Brasil, transformou a situação mais complexa do que já era. Com a decisão de Dino, os bancos brasileiros, que vinham se mantendo mais ou menos à margem dos efeitos da legislação americana, se viram diante do dilema que vêm tentando contornar desde que essa confusão começou.

O que motivou a decisão de Dino foi uma Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional aberta a pedido do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), o braço institucional do sindicato patronal que representa as mineradoras que operam no Brasil. A ação diz respeito a um processo aberto na justiça britânica por 58 municípios brasileiros afetados pelos desastres ambientais causados pelo rompimento das barragens de rejeitos nos municípios de Mariana e de Brumadinho. Interessados em aumentar o valor das indenizações pelas tragédias, eles recorreram aos tribunais do Reino Unido.

O IBRAM deu entrada no pedido no dia 12 de junho de 2024, há um ano e dois meses, portanto. Para se ter ideia do que isso significa, basta lembrar que, àquela altura, Joe Biden sequer havia desistido de concorrer à reeleição americana e ninguém poderia imaginar que, pouco mais de um ano depois, o Brasil estaria envolvido até o pescoço em sua demanda com os Estados Unidos.

Na decisão de segunda-feira, o ministro sequer mencionou a lei americana. Mas, também, não precisava mencionar. De acordo com o despacho, não há “subordinação do Brasil a decisões judiciais, leis, decretos, ordens executivas e similares, emanadas de Estado estrangeiro. Não existe, como regra, eficácia de tais atos no território brasileiro, sem a devida incorporação e concordância dos órgãos de soberania regrados pela Constituição e pelas leis nacionais”.

Em outras palavras, leis e decisões tomadas por tribunais de países estrangeiros só terão efeito no Brasil caso venham a ser homologadas pelo STF. No dia seguinte, em entrevista à Agência Reuters, Moraes pôs um pouco mais de lenha nessa fogueira ao dizer que os bancos brasileiros “podem ser penalizados internamente” caso resolvam aplicar no país as sanções previstas pela lei americana.

A rigor, e pelo que diz a lei, os bancos brasileiros que operam nos Estados Unidos seriam obrigados a estender os efeitos das sanções da Magnitsky a seus clientes sancionados pela lei. O que, naturalmente, inclui Moraes ou qualquer outro brasileiro que venha a sofrer os efeitos da lei. A situação, como se vê, é complexa e só se explica pelo dilema clássico das brincadeiras infantis: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. E como ninguém parece disposto a recuar, nos resta apenas aguardar as cenas dos próximos capítulos.

(*) Empresário luso-brasileiro

Fonte: https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/nuno-vasconcellos/2025-08-24/entre-a-cruz-e-a-espada.html

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