Correndo contra a COP30: quilombo histórico é atropelado por obra apressada do governo

Foto: Cícero Pedrosa Neto/Carta Amazônia

O Quilombo do Abacatal, em Ananindeua (Pará), é um território tradicional com mais de 300 anos de história e resistência, localizado às margens do rio Uriboquinha. Nos últimos anos, essa comunidade centenária tem enfrentado sérios impactos socioambientais decorrentes da implantação de grandes obras de infraestrutura nas proximidades.

A entrada do quilombo é marcada por um portão de ferro, vigiado 24 horas pelos moradores desde sua construção, há 11 anos. Este controle, que exige a liberação da Associação de Moradores e Produtores Quilombolas de Abacatal/Aurá (AMPQUA), visa impedir o acesso de pessoas não autorizadas e potenciais ameaças.

O conflito principal: a Avenida Liberdade e a COP30

Túnel de acesso dos moradores do quilombo na Av. Liberdade – Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia

A principal fonte de preocupação da comunidade é a construção da Avenida Liberdade, uma das maiores obras de infraestrutura e mobilidade urbana da Grande Belém, citada pelo Governo do Pará como um legado da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), prevista para novembro.

  • Aceleração da Obra: A avenida, de 13,4 km, está prevista para ser entregue ainda neste mês, com um cronograma acelerado que, segundo a artista e educadora Melina Maya, contrasta com a lentidão das obras de compensação prometidas ao quilombo.
  • Violação de Direitos: Os moradores denunciam que o projeto, em especial a construção de um túnel conectado à via, foi realizado sem a Consulta Prévia, Livre e Informada da comunidade, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Eles alegam que a obra não foi deliberada em reuniões com representantes do governo.

Impactos socioambientais e o questionamento do “Viaduto-Túnel”

Os moradores e especialistas apontam uma série de impactos negativos da obra:

  1. Impacto na Biodiversidade: A via corta a vegetação nativa da Área de Proteitação Ambiental (APA) Metropolitana de Belém e passa às margens do Parque Estadual do Utinga, ameaçando sua biodiversidade.
  2. Impacto na Comunidade: Vanuza Cardoso, liderança espiritual e integrante da sexta geração do quilombo, relata a queda na produção de açaí e pupunha, atropelamento de animais e o aumento da especulação imobiliária. Maria Santana da Costa, liderança histórica, menciona o aumento do calor, assoreamento de igarapés e perda de áreas de extrativismo.
  3. Prioridade Logística: O cientista social André Farias (UFPA) questiona o argumento de “mobilidade urbana”, afirmando que o objetivo real da Avenida Liberdade é facilitar o escoamento de mercadorias, criando uma rota mais curta e barata para o transporte de cargas até o porto de Vila do Conde.

O polêmico túnel/passagem de fauna

Moradores temem passar pelo túnel – Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia

O projeto da avenida prevê 34 passagens de fauna. Uma delas, um túnel escavado com cerca de quatro metros, tem gerado insegurança e revolta:

  • “Fauna Humana”: Melina Maya critica a instalação dessa estrutura, questionando se o governo “acha que somos uma fauna humana”, obrigando os moradores a usar “os mesmos caminhos projetados para os animais”, o que ela classifica como um exemplo de racismo ambiental.
Maria Santana da Costa, liderança comunitária do quilombo – Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia
  • Risco de Segurança: O músico Paulo Otas, morador, expressa medo de desabamento, pois a estrutura de vigas de concreto sobre o túnel tem como suporte apenas o barro escavado, que pode deslizar no inverno amazônico, e por onde passarão caminhões pesados. O túnel também estaria abaixo do leito de uma nascente, aumentando o risco de submersão.
Paulo Otas, morador do quilombo, denuncia a construção do túnel. A obra foi feita sem o consentimento da comunidade – Foto: Adison Ferreira/Carta Amazônia

O atraso das obras de compensação (condicionantes)

Apesar do ritmo acelerado da Avenida Liberdade, as nove obras de mitigação e compensação prometidas ao Quilombo do Abacatal, aprovadas em audiência pública, estão paralisadas ou atrasadas:

  • Apenas uma em andamento: Apenas a construção do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) está em andamento, mas, segundo Melina Maya, a obra não avança por falta de material.
  • Sem previsão: Projetos cruciais, como a pavimentação da estrada de acesso (prevista só para 2026), a construção de praça, quadra, anfiteatro, museu, e a revitalização da sede da Associação Comunitária e posto de saúde, não têm previsão de início.
  • Conclusão dos Moradores: Para Melina, essa situação demonstra que a prioridade do governo é a avenida, e que “as obras condicionantes e os direitos dos quilombolas parecem não ter nenhuma importância”.

Resposta do governo

Procuradas, as Secretarias de Estado de Obras Públicas (Seop) e de Infraestrutura e Logística (Seinfra) se manifestaram:

  • Seop: Afirmou que as obras do CRAS estão em andamento e que outros projetos (UBS, espaço cultural e de lazer) estão em processo licitatório.
  • Seinfra: Defendeu que o projeto da Avenida Liberdade foi “amplamente debatido” e que 57 condicionantes foram estabelecidas e estão sendo “devidamente cumpridas”, incluindo pavimentação de vias e etapas de terraplenagem. Sobre o túnel, esclareceu que se trata de um viaduto com 4,50m de altura e 8,60m de largura, construído conforme o projeto aprovado e validado.

Assessoria de comunicação: Sarah Santos

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