
Por Juscelino Taketomi
Há coisas que só acontecem neste país, e uma delas atende pelo nome pomposo de “dragagem dos rios amazônicos”. O anúncio veio com aquela solenidade típica de planos grandiosos e raciocínios improváveis: milhões de reais para “restaurar as condições naturais de navegabilidade”. É bonito de ouvir, soa técnico, quase poético, como um verso de edital rimando com o erário.
Mas eis o detalhe: resolveram fazer isso no auge da cheia, justo quando o rio está com a barriga cheia d’água, transbordando em plena farra das águas. É como tentar enxugar gelo em chamas, uma operação que desafia tanto a lógica quanto o bom senso, ambas já um tanto rarefeitas por aqui.
De um ponto de vista científico, a empreitada é uma mistura de bravura e delírio tropical. Cada metro cúbico dragado é prontamente substituído pela própria natureza, que observa a cena e gargalha com sarcasmo fluvial. O dinheiro público, por sua vez, também segue o fluxo: desce o rio com elegância, ligeiro e sem pressa de voltar.
Enquanto as dragas posam para fotos entre Itacoatiara e Manaus, os gráficos, uns chatos que insistem em mostrar a realidade, indicam que o Solimões segue inchando lá em Tabatinga. É o equivalente a reformar o telhado no meio de um temporal, só que com coletiva de imprensa e tudo – um show midiático.
Os navegadores, supostos beneficiários da epopeia hidráulica, observam de camarote. Porque na cheia o problema não é raspar o fundo, é não ser levado pela correnteza até Parintins sem querer. Dragar rio em época de fartura d’água é como abrir sorveteria no Polo Norte: o gesto é nobre, heroico até, mas o resultado é duvidoso.
Mas o importante, dizem os otimistas, é “movimentar a economia”. De fato, movimenta-se muito especialmente a economia da criatividade contábil e da paciência coletiva. E, convenhamos, ninguém mobiliza recursos para o nada com tanta convicção quanto nós, brasileiros.
Por seu turno, a nossa velha Amazônia assiste, atônita e divertida, à coreografia das dragas. O Polo Industrial de Manaus (PIM), sempre pragmático, bate palmas discretas e pergunta: não seria mais sensato guardar tantos milhões de reais para quando o rio realmente dá trabalho, ou seja, na seca?
No fim das contas, a dragagem é mais que uma obra, é uma alegoria do país. Um Brasil que insiste em nadar contra a corrente da lógica, dragando rios cheios e deixando secar o bom senso. Aqui, o assoreamento mais preocupante não é o dos leitos fluviais, mas o das ideias.
Vamos em frente nesse exercício de engenharia surrealista patrocinado com verba pública e esperança teimosa. Que os órgãos de controle tenham remos firmes e botes rápidos, porque a correnteza de milhões continua descendo, serena e satisfeita, rumo ao grande oceano da amnésia orçamentária.
Se o país insiste em dragar o que está cheio, o povo continua tentando remar no seco. E, pelo visto, ainda vão nos vender ingresso para assistir à próxima maré de genialidades. Ai de ti, Amazônia, como diria Márcio Souza.












[…] Como despejar milhões em rios e continuar rico de incompetência […]