
“Manaus tem indústria. A Amazônia tem biodiversidade e centralidade climática. O Brasil tem SUS e necessidades concretas. Falta a decisão de costurar essas forças numa política de futuro que trate pesquisa como infraestrutura, floresta em pé como vantagem competitiva e capacidade fabril como instrumento de soberania.”
Por Nelson Azevedo (*)
Um paradoxo nos persegue
O Brasil convive há tempo demais com uma contradição que nos humilha em silêncio. Produz ciência de alto nível, forma gente capaz de competir com qualquer centro do mundo, mas ainda costuma importar caro aquilo que poderia transformar aqui mesmo em solução, emprego qualificado e autonomia tecnológica. Essa distância entre laboratório e vida cotidiana é o espaço onde a doença prospera, onde a dependência se naturaliza e onde a nação paga duas vezes, primeiro ao não investir com método e depois ao correr para remediar o que poderia ter prevenido.
Um 2025 que ensina sem pedir licença
Em dezembro de 2025, duas vitórias brasileiras contra a dengue ganharam o mundo e, mais importante, ganharam densidade de prova. A revista Nature incluiu o pesquisador da Fiocruz Luciano Moreira na série Nature’s 10, que reúne pessoas ligadas a desenvolvimentos científicos marcantes do ano, destacando a estratégia de controle do Aedes aegypti com a bactéria Wolbachia e a passagem decisiva do experimento para a escala.  Não é detalhe de prestígio, é sinal de maturidade institucional, porque um país que escala tecnologia de saúde pública está dizendo ao mundo que aprendeu a transformar conhecimento em proteção coletiva.
A escala como linguagem da eficácia
Estes episódios deixam claro o que distingue ciência admirável de ciência transformadora. A abertura de uma fábrica dedicada à produção massiva de ovos de mosquito, com capacidade semanal acima de dezenas de milhões, é a fotografia do momento em que uma boa ideia deixa de ser promessa e vira política material, com rotina industrial, controle de processo e ambição de cobertura populacional.  A Wolbachia, por impedir o desenvolvimento e a transmissão de vírus no mosquito, muda a lógica do combate, porque atua como bloqueio contínuo e não como solução episódica.
Uma vacina de dose única como marco de Estado
No mesmo ciclo, a Anvisa publicou no Diário Oficial o registro da Butantan-DV, vacina nacional apontada como a primeira de dose única contra a dengue, concluindo o processo regulatório e habilitando produção e comercialização para uso no país, com oferta prevista de forma exclusiva pelo SUS.  Esse fato tem um peso que vai além da imunização, porque revela uma decisão civilizatória. Quando o Brasil domina a própria resposta tecnológica a uma doença tropical que o afeta com brutalidade, ele reduz vulnerabilidade, economiza no longo prazo e afirma soberania sanitária.
O tamanho do problema que nos trouxe até aqui
A dengue, para nós, deixou de ser apenas sazonalidade e virou ameaça permanente, empurrada por dinâmica urbana, clima, mobilidade e desigualdades. Em 2024, o país registrou 6.484.890 casos prováveis e 5.972 mortes confirmadas, além de óbitos em investigação, segundo dados do Painel do Ministério da Saúde reportados pela Agência Brasil.  Esse número não é estatística, é um retrato do custo humano de não termos, por décadas, tratado ciência e prevenção como infraestrutura essencial do Estado brasileiro.
A prova concreta de que ciência muda a curva
O método Wolbachia não ficou no plano da crença. Houve medição, houve comparação, houve efeito mensurável. A própria rede vinculada à Fiocruz divulgou que, em Campo Grande, a incidência de dengue caiu 63,2% em 2024 nas áreas onde a Wolbachia atingiu níveis estáveis após intervenções feitas entre 2020 e 2023.  Quando a ciência produz evidência e a evidência orienta escala, nasce um tipo de confiança pública que nenhum discurso sozinho consegue fabricar.
A Amazônia como plataforma de descoberta
É aqui que a conversa precisa atravessar o mapa e pousar com seriedade na Amazônia. A floresta em pé não é apenas uma paisagem a ser defendida, é uma biblioteca biológica de escala planetária, um sistema de inovação da natureza onde moléculas, microrganismos, mecanismos de defesa e interações ecológicas carregam potencial para medicamentos, diagnósticos, biomateriais, repelentes, enzimas, soluções contra resistências e novas fronteiras terapêuticas. O mundo inteiro sabe disso, e justamente por saber disputa, muitas vezes sem transparência, as portas desse patrimônio.
Manaus como peça industrial que falta à equação
A grande pergunta nunca foi se a Amazônia tem valor científico, e sim por que esse valor raramente se converte em cadeia produtiva robusta na própria região. Manaus oferece um elemento que falta em muitos lugares do país, a capacidade fabril instalada, a cultura de engenharia, o chão de fábrica disciplinado, a experiência com escala, qualidade e complexidade produtiva. O Polo Industrial de Manaus já provou que sabe produzir, e sabe produzir em grande quantidade. A transição que se impõe agora é estratégica e não romântica, diversificar inteligentemente para que essa musculatura industrial dialogue com a agenda de saúde e biotecnologia, sem negar sua história e sem desperdiçar competências acumuladas.
O caminho para um Polo Industrial da Saúde na Amazônia
O modelo está diante de nós, porque a dengue já ensinou a gramática. Pesquisa forte descobre e valida, regulação séria dá previsibilidade, indústria escala com padrão, e o SUS garante cobertura, continuidade e equidade. Um Polo Industrial da Saúde em Manaus pode nascer dessa integração, articulando desde componentes e dispositivos médicos até diagnósticos e cadeias de suprimentos críticas, aproximando universidades, institutos e empresas em torno de plataformas de inovação que não morrem no protótipo. A lógica não é trocar uma vocação por outra, é agregar valor, é abrir um novo corredor de futuro dentro do que já existe.
Governança para evitar o velho extrativismo com roupa nova
Nada disso faz sentido se repetir a história de extração, agora com linguagem tecnológica. A bioeconomia da saúde precisa de regra, de repartição de benefícios, de respeito aos povos originários e aos territórios, de rastreabilidade, de ética e de um pacto de ciência que deixe valor aqui. A Amazônia não pode ser apenas fonte, precisa ser também autora. E autoria, na economia real, significa laboratórios bem equipados, carreiras científicas protegidas, centros de ensaio, redes de dados e um ambiente regulatório que estimule inovação sem abrir mão do interesse público.
Compra pública inteligente como motor de escala
No Brasil, não existe escala em saúde pública sem o SUS, e isso não é fragilidade, é potência estratégica. Quando a Anvisa registra um imunizante e o país planeja sua oferta pelo SUS, cria-se a previsibilidade que permite planejamento industrial, redução de custo e construção de autonomia. A compra pública inteligente, combinada com metas e com inovação orientada a problemas reais, pode ser o eixo que consolida o Polo da Saúde em Manaus como política nacional, e não como experimento regional.
Boas notícias que sugerem novos caminhos
As boas notícias contra a dengue em 2025 não foram um milagre, foram método, investimento e escala. A lista da Nature e o registro da vacina brasileira não deveriam ser apenas manchetes a celebrar, deveriam ser sinalizações de rota.  Manaus tem indústria. A Amazônia tem biodiversidade e centralidade climática. O Brasil tem SUS e necessidade concreta. Falta a decisão de costurar essas forças numa política de futuro que trate pesquisa como infraestrutura, floresta em pé como vantagem competitiva e capacidade fabril como instrumento de soberania. A dengue mostrou que dá certo quando o país decide fazer do conhecimento uma proteção. A Amazônia pode ser o próximo capítulo, e talvez o mais decisivo, dessa mesma maturidade nacional.
(*) Nelson é economista, empresário e presidente do SIMMMEM – Sindicato da Indústria Metalúrgica, Metalomecânica e de Materiais Elétricos de Manaus, conselheiro do CIEAM e da CNI e vice-presidente da FIEAM.







