
Por J. R. Guzzo (*)
Adespedida da ministra Rosa Weber, enfim aposentada do STF por chegar à data de vencimento no prazo de validade previsto para o cargo, vale por um doutorado completo na atual descida do Brasil ao mundo dos países em que nenhum poder emana do povo. Na verdade, e cada vez mais, a nação está sendo governada segundo o princípio geral de que a população não existe — está viva, trabalha e paga impostos, mas não é levada em conta, nunca, nas decisões que realmente influem na sua vida real. Para todos os efeitos práticos, existe cada vez menos sociedade e cada vez mais “Estado”. É o regime ideal para quem tem a força armada a seu serviço e, como consequência, a certeza de que não precisa se preocupar com os efeitos de nenhuma das decisões que toma. E se a maioria do povo estiver contra, ou não se souber qual é a sua opinião? Problema do povo. Para o STF e seus parceiros do governo Lula, que mandam em tudo e não prestam contas de nada, o povo não tem capacidade para saber o que é melhor para ele. Não pode, portanto, participar de nenhuma decisão séria; não precisa nem mesmo ser consultado. O STF, Lula e seus satélites mandam. O resto obedece e continua pagando — a menos que queira se ver enfiado num inquérito por “atos antidemocráticos” e outros pecados que clamam aos céus e pedem a vingança de Deus.
O último voto da ministra Rosa é um clássico em matéria de aversão ao povo brasileiro — a grande psicose que comanda todas as decisões do STF de hoje. Com um manifesto feminista de qualidade mental padrão Twitter, e ao longo de 103 páginas de prosa mal resolvida, mal escrita e desprovida de sinais elementares de vida inteligente, a ministra decidiu legalizar o aborto no Brasil. Ela e os seus serviços de relações públicas na mídia dizem que não foi isso. Mas é claro que foi exatamente isso. Rosa anulou dois artigos do Código Penal que proibiam o aborto — exceto para salvar a vida da mulher, se o feto apresentar deformações cerebrais incuráveis e nos casos de estupro. Se é assim pode, segundo a lei; se não é assim não pode. A decisão da ministra estabelece que agora pode sempre, até as 12 semanas de gravidez. É justo ou não é? Isso simplesmente não vem ao caso. Há razões, argumentos fortes e anseios legítimos dos dois lados da questão. Mas justamente por tal motivo, e pelo que manda a Constituição Federal, só a população tem o direito legal de decidir se o aborto deve ser liberado ou se deve continuar restrito às condições mencionadas acima — e a única maneira de a população tomar essa decisão é através de lei aprovada pelo Congresso Nacional.

É isso, acima de qualquer outra coisa, que o STF não quer de jeito nenhum, nem ele nem os seus sócios do “Sistema L”: que a população tome decisões em assuntos como o aborto. O motivo disso pode ser entendido por uma criança com 10 anos de idade. Se o povo brasileiro tivesse o direito de decidir, o STF, Lula e a esquerda perderiam todas; o povo, em geral, é contra tudo o que eles querem e a favor de tudo o que não querem. Mas não daria para saber, no mundo das realidades, o que a população de fato prefere? É claro que daria para saber — bastaria perguntar a ela. É exatamente por isso que a prioridade absoluta da atual Junta de Governo é impedir que o brasileiro tenha direito à voz, ao voto em plebiscito e a decidir, via Congresso, qualquer questão relevante a seu próprio respeito. O resultado seria um Brasil que os ministros, e os que admiram suas crenças, acham “errado”. Como têm a polícia e o Exército sob o seu comando, fica fácil resolver esse problema: proíbem com seus despachos que esse “Brasil errado” exista. O caso do aborto é simples. Um partido de extrema esquerda decidiu mudar o Código Penal; como tinha certeza de que o Congresso jamais aprovaria nada de parecido, correu ao STF e pediu que os ministros mudassem a lei. Pronto. O caso está resolvido.

A ministra Rosa, como se sabe, é apenas uma figurante a mais no elenco desta comédia — a partir de agora, por sinal, uma ex-figurante. Mas o seu voto no caso do aborto deve ficar como uma peça preciosa no monumento que um dia, talvez, será construído para santificar as piores produções do STF no presente momento da história brasileira. O voto, de um lado, é uma tomografia de altíssima resolução sobre o que acontece quando se inventa algo chamado “Constituição Viva” — a Constituição legal some do mapa, e em seu lugar as leis passam a viver em estado de metamorfose ambulante, como diria Raul Seixas (“Eu quero dizer agora/ o oposto do que eu disse antes” etc. etc. etc.). De outro, deixa a ministra no papel do “Johnny” descrito por Thomas Sowell. O problema, como diria o filósofo norte-americano, não é que Rosa não pensa. Não é nem que Rosa pensa errado. O problema é que Rosa não sabe o que é pensar. A comprovação final está no texto que foi escrito para expressar a sua decisão. Não é um conjunto de orações em português. É um ectoplasma onde as palavras não se conectam umas com as outras, as frases não conseguem formar raciocínios coerentes, e os argumentos são substituídos por uma balbúrdia de palavras suspostamente “difíceis” — e que acabam sendo apenas tolas.
“The problem isn’t that Johnny can’t read. The problem isn’t even that Johnny can’t think. The problem is that Johnny doesn’t know what thinking is; he confuses it with feeling.”
― Thomas Sowell pic.twitter.com/bsH2FQr2Sy— Steve Hanke (@steve_hanke) November 21, 2020
A ministra discorre sobre “aportes informacionais”, menciona a “justiça reprodutiva” e escreve: “Não há falar”. (Que língua seria essa — “não há falar”?) Afirma que com a liberação do aborto haverá menos, e não mais, abortos. (Nos Estados Unidos, sempre citados como a estrela-guia mundial em matéria de costumes, 20% de todas as gravidezes resultam em aborto — é um em cinco.) Mais que tudo, Rosa vem com algumas ideias prodigiosas, se chegassem a ser ideias. Fala em “proteção gradual do direito à vida”, que a seu ver está prevista no “modelo constitucional” que foi adotado pelo Brasil. Diz, por isso, que a vida não é um direito absoluto do ser humano. Depende. A proteção à vida, no entendimento da ministra, tem de ser “gradual” e “incremental”; quer dizer, pelo que dá para entender, que vai aumentando à medida que a pessoa fica mais velha. Varia segundo a idade, portanto. Um feto com três meses tem o coração batendo plenamente, movimenta os músculos, os braços e as pernas, e os seus órgãos funcionam de forma autônoma. Na visão de Rosa Weber, tais condições não lhe dão direito à proteção da vida; isso só vai acontecer a partir do dia em que começar o seu quarto mês de existência.
A vontade do cidadão foi ignorada nas decisões do STF quanto à liberação da maconha. Foi contrariada diretamente na volta do “Imposto Sindical”. Foi negada, também, na abolição do “marco temporal”
Muita gente, no Brasil e no mundo, concorda com essa postura; da mesma forma, muita gente discorda. Nos países onde a maioria concorda, o aborto é permitido — mas em todos eles, sem exceção, o direito de abortar foi decidido por votação do Parlamento, e não por uma sentença do Supremo. Aqui, no Brasil sem povo que vai sendo criado pelo STF e os seus sócios do governo Lula, o Parlamento não existe. Para quê? A própria Rosa deixou isso claro — e por escrito. “Mostra-se desnecessária”, registrou ela em seu voto sobre o aborto, “a atuação do legislador”. Segundo diz a ministra na decisão, a lei brasileira “adota desenho institucional desproporcional à gramática dos direitos fundamentais”. Gramática? Que gramática? Direitos não têm gramática — ou existem, precisamente como estão definidos na Constituição e nas leis aprovadas pelo Congresso, ou não existem. O fato objetivo é que o STF deu a si próprio o poder de eliminar artigos do Código Penal — coisa que só o Poder Legislativo, e mais ninguém, está autorizado por lei a fazer no Brasil. Mais ainda: além de “desnecessário”, o Congresso Nacional tem culpa nessa história, de acordo com a ministra. “O legislador falhou no respeito ao critério do mínimo necessário para a persecução do objetivo legislativo correspondente à sub-regra da necessidade”, escreveu Rosa no seu voto. Sério? E quem consegue entender alguma coisa em todo esse palavrório desvairado? Outro dia o ministro Alexandre de Moraes substituiu a palavra “prisão” por “relativização da liberdade de ir e vir”. Deve ser um novo idioma.

A situação até que poderia ser considerada relativamente razoável se os únicos problemas do Brasil, em termos de Constituição, fossem a questão do aborto e o português angustiante da ministra Rosa. É mais do que isso — na verdade, tudo está num clima de UTI quando o assunto é a aplicação da lei neste país. A vontade do cidadão foi ignorada nas decisões do STF quanto à liberação da maconha. Foi contrariada diretamente na volta do “Imposto Sindical”. (O pagamento era voluntário, por lei aprovada pelo Congresso em 2017, e a partir daí, como ficou claro nestes últimos seis anos, ninguém mais quis pagar. Mas o STF decidiu que o pagamento vai ser outra vez descontado diretamente na folha — seja o trabalhador sindicalizado ou não.) Foi negada, também, na abolição do “marco temporal” — isso depois de a Câmara dos Deputados ter aprovado agora em maio, por 283 votos contra 155, uma lei estabelecendo que os índios só podem reivindicar a demarcação de terras que ocupavam até 1988, ano em que a Constituição brasileira entrou em vigor. Vem mais pela frente — não se sabe exatamente o que, mas a experiência concreta dos últimos anos tem mostrado que pode ser qualquer coisa. Afinal, como disse a ministra Rosa, o legislador é “desnecessário” na questão do aborto. Se é dispensável nisso, e em outros casos, o raciocínio lógico indica que não é necessário para nada, desde que o STF resolva que não é.
Os ministros — e muita gente boa acredita neles — argumentam que estão agindo pelo bem comum e por um país mais justo, segundo as suas ideias pessoais do que seja justiça. Se a população não quer as coisas que o STF considera certas, e se a Câmara e o Senado não aprovam as leis que o Supremo considera convenientes para a sociedade, então os ministros têm de corrigir a conduta dos cidadãos e do Congresso. É a postura “proativa”, como dizem; o STF tem de “apressar a história”, “editar o Brasil” e fazer mais coisas do mesmo biotipo. Mas a Constituição não diz que os ministros têm de cuidar do bem comum nem que têm de buscar um país mais justo. Têm apenas de cuidar da aplicação correta da lei. É claro que precisa ser assim: por que o seu modelo de sociedade seria melhor do que qualquer outro? Se querem mudar o Brasil, têm de se demitir dos seus cargos e concorrer à eleição pelo voto popular, como todo mundo. É a única maneira correta, e legal, de fazer política.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-184/cancelem-o-povo/











