Calem a boca

A expulsão do X do Brasil é o pior ataque já cometido contra a liberdade de expressão em toda a história da República

Elon Musk | Foto: Shutterstock

Por J. R. Guzzo (*)

O ministro Alexandre de Moraes bem que poderia ser descrito como a maior prova viva da força que o princípio da inércia tem hoje na vida política do Brasil. Nenhum objeto se move sem energia, e ele tem mais energia que todos os outros sócios-proprietários do aparelho estatal somados. Da mesma forma, um corpo sobre o qual não se exerce pressão permanece inerte, do jeito que está — e, quanto mais inerte estiver, mais força vai ser exigida para mudar o seu estado. Cinco anos atrás, o ministro violou a lei para atender ao interesse pessoal de um dos seus colegas de STF. Percebeu, então, não apenas que ninguém reclamou nada, mas que podia fazer de novo quantas vezes quisesse — e que, quantas mais vezes fazia, com mais medo ficavam dele. A partir daí não parou mais. O resultado é que a sua massa, hoje, é maior que a de qualquer autoridade pública do país.

A expulsão do X do Brasil é o pior ataque já cometido contra a liberdade de expressão em toda a história da República. De um golpe só, mais de 20 milhões de brasileiros foram proibidos de se manifestar na maior plataforma de comunicação aberta para a população. Na imagem do jurista André Marsiglia, o ministro disparou uma barragem de gás lacrimogêneo sobre a multidão, esvaziou a praça pública e silenciou, enfim, as vozes que vinha querendo calar havia anos. Não tem nada a ver com o “enfrentamento” a Elon Musk, a coragem para encarar o “bilionário estrangeiro” ou a defesa do cumprimento de “ordens judiciais”. Tem a ver unicamente com a aplicação de censura em massa, como só se faz na Rússia, China, Venezuela e outras das piores ditaduras do mundo. Esse cala-boca geral no povo brasileiro, porém, não foi dado só por Moraes. É resultado do maciço movimento de cumplicidade, covardia, interesses e negacionismo moral que dá apoio a todas as decisões que vêm dele.

Os ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o procurador-geral da República Paulo Gonet, durante solenidade comemorativa ao Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília (22/8/2024) – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A ordem vem de Moraes? Então está certa para as gangues que controlam o comando do Congresso Nacional, para a classe “civilizada” e para a maioria dos jornalistas brasileiros, hoje os maiores inimigos da liberdade de palavra neste país. O horror de todos eles, junto com a extrema esquerda que precisa da ditadura e dos ladrões que precisam do STF para ficarem do lado de fora da cadeia, é a vontade da maioria. Desde que começou a sua escalada, Moraes é descrito por todos os citados acima, junto com a massa de juristas que têm causas a ganhar na Justiça, como o homem que salvou e continua salvando, 24 horas por dia, “a democracia brasileira”. Jamais se explicou concretamente quando, como e por que ele salvou alguma coisa. Mas essa ficção serve para ocultar o que estão realmente querendo: que o povo não fale nas redes sociais, não vá para a Avenida Paulista e, mais que tudo, que não vote em quem quer.

Isso tudo não tem preço para quem só entende o Brasil como uma senzala na qual o senhor do engenho é o “Estado” e o resto da população tem a função de trabalhar e pagar imposto. Achar que o ministro Moraes é apenas um monstro fora de controle pode dar menos trabalho para a cabeça, mas é uma licença-prêmio para todos os doutores Frankenstein que estão por trás dele. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, é um dos membros “top” de linha dessa equipe. Em cinco anos inteiros ele não foi capaz de apontar uma única ilegalidade em nada do que o colega fez. Pense em algum absurdo produzido até hoje por Moraes — Barroso ficou a favor. Foi mais uma voz de aprovação no linchamento do X, como havia sido na ocultação dos atos de delinquência praticados por juízes a serviço do ministro e revelados nas gravações que o jornalista Glenn Greenwald publicou há pouco na Folha de S.Paulo.

Barroso, como todos os seus colegas de STF, é um comerciante destacado da doutrina segundo a qual a democracia no Brasil começou a existir quando Moraes substituiu a Constituição pelo regimento interno do STF e por seu inquérito perpétuo contra os atos “antidemocráticos”. Por ter criado e salvado a nação da “extrema direita”, os colegas lhe deram o pleno direito de ir mudando a lei na hora que a lei atrapalhar as operações de sua polícia de “defesa das instituições”. Moraes é também um dos maiores ídolos jamais vistos na imprensa brasileira, em todos os tempos. Faz parte de todo manual de redação, como mandamento de obediência obrigatória, só descrever as violações objetivas da lei que são praticadas por Moraes como “possíveis exageros”, “excesso de zelo” e outras vigarices verbais — antes de dizer, também de forma compulsória, que nada disso diminui o heroísmo do ministro em sua luta para impor a democracia no Brasil.

Presidente Rodrigo Pacheco, em Brasília (DF)
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, em Brasília – Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Há também, em favor do ministro, a inércia chapada das mesas diretoras da Câmara e do Senado. Muito deputado e senador da oposição, é verdade, tem agido com honradez, valentia e senso moral na denúncia do regime ilegal em vigor no Brasil. Mas a grande maioria está fechada com Moraes e o STF, para ficar do lado que imagina ser o mais forte e, principalmente, para fugir de processos criminais por corrupção. Vão trair um e o outro cinco minutos depois de o vento mudar, mas enquanto o vento não muda aprovam até o próprio fuzilamento se Moraes der a ordem. O presidente da Câmara dos Deputados, com prazo de validade já em vias de vencimento, se esconde no banheiro da Casa, se for preciso, para não correr o risco de desagradar o ministro. Já o presidente do Senado acha que pode defender melhor os seus interesses se colocando como o chefe da segurança pessoal de Moraes.

O senador Rodrigo Pacheco, o único que tem autoridade legal para colocar o ministro em julgamento no Senado, ignora sistematicamente todos os pedidos apresentados pelos senadores para apreciar os seus atos. Ninguém está pedindo para ele ser contra nem a favor de nada — pede-se, apenas, que permita o debate do caso no foro em que o caso tem de ser debatido. Mas o presidente do Senado não faz nada, embora possa ser acusado pelo crime de prevaricação — retardar medidas que está obrigado a tomar em função do seu cargo. Despreza, também, um abaixo-assinado já com 1,3 milhão de assinaturas pedindo que ele autorize o debate. Ao contrário, sua última realização foi ir a um jantar oferecido por Moraes em sua própria homenagem — ou seja, o homem encarregado por lei de fazer o julgamento está de braços dados com a pessoa que deve julgar.

É “bolsonarismo”, em suma, criticar Moraes, Barroso, o STF, Pacheco, a mídia, a Rede Globo, o governo — e quem faz isso não pode ter a proteção de nenhuma lei

Essa sucessão de aberrações é a consequência direta da doença que levou a vida pública brasileira à UTI e cuja cura permanece desconhecida: o “antibolsonarismo” a qualquer preço. Essa fixação se fundamenta na ideia geral de que o ex-presidente Jair Bolsonaro não pode mais, em nenhuma hipótese, participar da política nacional. Quem discordar desse veto é classificado automaticamente como “bolsonarista” e, em consequência, se vê desprovido de seus direitos civis, a começar pela liberdade de expressão e pela liberdade de votar em quem quiser. É “bolsonarismo” afirmar que Alexandre de Moraes e o STF tomam decisões ilegais. Por exemplo: tirar o X de 20 milhões de brasileiros, anular as multas e as dívidas das empresas mais corruptas do Brasil, manter há um ano e meio na cadeia, sem julgamento, uma cabeleireira que manchou de batom uma estátua em Brasília no 8 de janeiro. É “bolsonarismo”, em suma, criticar Moraes, Barroso, o STF, Pacheco, a mídia, a Rede Globo, o governo — e quem faz isso não pode ter a proteção de nenhuma lei.

O ministro Luís Roberto Barroso Barroso afirmou que mantém uma relação harmoniosa com os outros Poderes | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que mantém uma relação harmoniosa com os outros Poderes – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As leis e a Constituição Federal, obviamente, deixaram de proteger os 20 milhões de cidadãos brasileiros que não eram parte dos procedimentos judiciais contra Elon Musk, não cometeram nenhum tipo de delito, não escreveram uma única linha contra a democracia no X e não podem mais se expressar ali, sob pena de tomarem multa de R$ 50 mil. Não protegem Musk — que jamais poderia ser processado pelo STF, pois não tem o foro que a lei estabelece para isso. É acusado de desrespeitar as leis brasileiras, quando manda que sua empresa respeite a Constituição do país. É punido com o bloqueio das contas bancárias de uma outra empresa sua, que não tem nada a ver com o que se publicou até agora no X. Exigem que Musk nomeie um presidente para a rede no Brasil, mas ele não pode nomear, porque se nomear o nomeado vai ser preso. Barroso, mídia etc. acham tudo isso legal.

A cassação do X foi apenas o espasmo mais recente desse surto de Coreia do Norte que atacou o ministro e todos os fundamentalistas que rezam pelo seu Alcorão. Moraes, para ficar só no grosso, acaba de proibir a Folha de S.Paulo de entrevistar um ex-assessor do ex-presidente, Filipe Martins — ou seja, ele está proibido de falar o que ainda não falou. Qual é a lei brasileira que permite isso? O mesmo Martins, por sinal, ficou seis meses preso apesar de ter comprovado materialmente que não fez o que era acusado de ter feito; tem, agora, de usar tornozeleira eletrônica. Moraes comanda há mais de cinco anos um processo criminal que envenena todas as decisões da Justiça brasileira. Não podia ser aberto, nem entregue a ele sem sorteio, nem indiciar pessoas sem foro especial, nem pegar todos os assuntos que lhe passam pela cabeça, nem estar aí até hoje, sem data para acabar, nem ser tocado em sigilo.

Nesse Brasil em pleno processo de degeneração legal, “ordem judicial” é qualquer decisão que saia do gabinete de Moraes. O STF foi transformado em vara criminal, segundo diz o próprio ministro. É ele que julga os recursos sobre as decisões tomadas por ele mesmo — ou então a sua “turma” no STF, como foi no caso do X, ou algum Flávio Dino, Zanin, Cármen etc. que jamais discordaram de qualquer ordem sua, ou o plenário, o que dá exatamente na mesma. Moraes processa no Supremo Tribunal do país, sem ter nenhum direito legal de fazer isso, pessoas que acusa de terem agredido a ele e à sua família no Aeroporto Internacional de Roma. Também não tem nenhuma prova das acusações que faz aos desafetos desde julho de 2023. Ao contrário, as fitas gravadas do aeroporto só mostram que não houve agressão — e menos ainda um “atentado” à democracia, como dizem.

Moraes, o STF e todos os que estão a seu lado, dizendo que defendem o “processo civilizatório”, descobriram que podem governar o Brasil através da desordem permanente. Dizem que estão lutando para salvar o “Estado de Direito” do “bolsonarismo”, como Nicolás Maduro diz que ganhou a eleição para salvar a Venezuela do imperialismo americano. O que fazem é anular as leis que os impediriam de fazer aquilo que estão fazendo. Não há nada que atrapalhe tanto o seu “projeto de país” quanto o ordenamento jurídico que deveria estar em vigor. São eles, e ninguém mais, que realmente ameaçam o Estado Democrático de Direito.

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A ministra do STF Cármen Lúcia, durante sessão na Primeira Turma da Corte (18/6/2024) – Foto: Mateus Bonomi/Estadão Conteúdo

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-233/calem-a-boca/

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