As imagens imaginárias

As suposições da polícia no atentado à democracia cometido no Aeroporto de Roma, em circunstâncias normais, não seriam aceitas nem por um juiz em começo de carreira. Mas este é o Brasil de 2023

Por J. R. Guzzo (*)

Está completando três meses inteiros de vida, agora já na ala dos desenganados da UTI, o que pode acabar sendo a maior fake news registrada em todo o território nacional desde que o ministro Alexandre de Moraes abriu quatro anos atrás o seu inquérito perpétuo, e único no mundo, para salvar o Brasil, justamente, das fake news — e da “desinformação”, das “milícias digitais”, das “informações certas com conclusões erradas” e de outros tantos crimes de lesa-pátria. A notícia, transformada pela mídia brasileira numa segunda explosão nuclear de Hiroshima, é que o próprio ministro Moraes e o seu filho foram “agredidos” por um “empresário bolsonarista” no Aeroporto de Roma no dia 14 de julho. Que tipo de agressão? Nunca ficou claro. Parece que um par de óculos caiu, mas talvez não tenha caído. Parece que houve um bate-boca na sala VIP, mas não se soube quem xingou a mãe de quem, ou mesmo se a mãe de alguém foi xingada. Parece que o ministro sofreu um ataque verbal, que poderia ou não ter sido físico, mas o acusado diz que não aconteceu nada disso. Enfim: o alicerce do episódio todo era uma tigela de gelatina orgânica.

Apesar da ausência de qualquer coisa remotamente parecida com algo que se possa chamar de prova, a agressão foi dada como um fato indiscutível, líquido e certo, e o noticiário entrou em transe. “Ministro Moraes sofre agressão no Aeroporto de Roma”, repetiram quase todos os órgãos de comunicação, numa espécie de manchete única. Nenhuma “agência de checagem” levantou a menor dúvida em relação ao que estava sendo publicado. Editoriais coléricos diziam que a “agressão” era um “atentado contra a democracia”. Mais do que o ministro, denunciavam as comentaristas da Rede Globo, tinham sido atacados o “estado de direito”, as “instituições” e o combate do STF contra o “fascismo”, o “terrorismo” e o “bolsonarismo”. O “crime da sala VIP”, segundo a imprensa, era a continuação do “golpe de Estado” do 8 de janeiro. O presidente da República, num severo acesso de ira, disse que os acusados eram “animais selvagens” e que “essa gente tem de ser exterminada”. A presidente do Supremo Tribunal de Justiça do país, em pessoa, meteu a Polícia Federal em cima dos acusados; apreenderam celulares e computadores, fizeram interrogatório em delegacia, revistaram o porta-malas do carro, como se o Brasil estivesse diante do caso de um novo Jack, o Estripador.

Desde o início, todas as esperanças da mídia, de Lula, da esquerda, do STF e dos signatários da “Carta aos Brasileiros em Defesa do Estado de Direito” foram colocadas em cima das fitas gravadas pelas câmeras do serviço de vigilância do Aeroporto de Roma. Estaria ali, segundo a imprensa garantiu ao público, a prova física da “agressão ao ministro Moraes”. Um jornal chegou a publicar, inclusive, uma história em quadrinhos revelando, momento a momento, o que teria acontecido; um dos desenhos mostra os tão falados óculos voando do rosto do filho de Moraes. Ninguém, entre os acusadores, jamais admitiu a menor possibilidade de que as coisas não tivessem sido exatamente assim. Dia após dia, a mídia anunciava que as fitas tinham sido preservadas. Que estavam com a polícia italiana. Que provavam de maneira definitiva, além de qualquer dúvida, a agressão contra o ministro — embora ninguém tivesse assistido a fita nenhuma. Que iam ser entregues à “Adidância” da Polícia Federal em Roma. (Descobriu-se, nessa história, que o pagador de impostos mantém uma “Adidância” da Polícia Federal em Roma; quem diria.) Que as fitas iam ser mandadas para o Brasil. Que chegaram ao Brasil. Que estavam sendo examinadas pelas autoridades.

Curiosamente, à medida que o tempo passava, a imprensa ia ficando menos e menos entusiasmada com a história das “imagens do Aeroporto de Roma”. As notícias foram se tornando mais espaçadas, depois mais raras e, no final, francamente desanimadas. O PT sumiu da área. Lula não falou mais em “animais selvagens”. Alexandre de Moraes, ele mesmo, nunca falou muito sobre o caso; depois que a PF recebeu as fitas, não falou nada. Que coisa, não? Deveriam estar todos em festa. Por que não estavam — e justo na hora, afinal, em que as benditas fitas chegaram ao Brasil? Se tinha havido uma agressão, como todos diziam, e se havia fitas gravadas dessa agressão, por que raios as imagens não apareciam? Não seria mais preciso, aí, desenhar história em quadrinhos no jornal — as cenas estavam gravadas, e iriam provar materialmente que Moraes ou seu filho tinham sido atacados. O que estaria acontecendo de errado? Se havia a prova, por que não mostravam a prova? Você sabe a resposta, desde o começo: as imagens nunca foram divulgadas porque nunca comprovaram agressão nenhuma. No fim das contas, a única imagem clara que realmente apareceu foi a do ministro dizendo ao acusado: “Bandido”.

O normal, aí, seria encaminhar essa história toda para o arquivo morto, ir saindo de leve e não tocar mais no assunto, como a mídia estava tentando fazer. Mas não — o “Poder Moderador” resolveu subir no trampolim para se exibir ao público da piscina. O ministro Dias Toffoli, que está administrando o bate-boca em nome da “suprema corte”, como diz Lula, achou uma boa ideia decretar o “sigilo” das imagens e dar mais “prazo” para a Polícia Federal investigar as fitas. Sério? Por que esse sigilo? Para não deixar que ninguém veja o ministro sendo atacado pela extrema direita? Toffoli diz, apenas, que a divulgação das imagens “não é necessária”. Não faz nexo. E por que mais “prazo” para dizer o que as imagens mostram? Uma fotografia é uma fotografia: ela mostra exatamente aquilo que a lente registrou. O que está lá aconteceu. O que não está lá não aconteceu. Não é preciso entrar na Polícia Federal, ou ser nomeado para o Supremo, para saber o que está numa imagem. Se o cidadão fotografou uma galinha, não vai aparecer um avestruz na foto. Quantos meses de estudo o ministro Toffoli estima que são necessários para a polícia descobrir se é uma coisa ou a outra?

A PF diz que os acusados tiveram, segundo a sua “expressão corporal”, uma “atitude hostil” em relação ao ministro Moraes, que “contribuiu sobremaneira” para “uma aparente agressão física”. O que seria uma “aparente agressão”?

O conjunto da obra é péssimo, mas conseguiram deixar a coisa ainda mais péssima. Foi divulgado um documento da PF, com 51 páginas e a análise de quase quatro horas de vídeo, com 146 imagens, do Aeroporto de Roma — as fitas que se esperam desde o dia 15 de julho e que, segundo garantiu a mídia, provariam positivamente o “atentado à democracia” cometido com a “agressão” a Alexandre de Moraes. O relatório não seria levado a sério em nenhum sistema de Justiça minimamente civilizado do planeta; serve, apenas, para mostrar a qualidade das provas produzidas hoje em dia pelos serviços de investigação criminal do STF. O agente que fez a análise das imagens não é louco para escrever a única coisa que poderia ter escrito: “Esses 146 frames do vídeo que examinamos não mostram nada”. Ele está na “polícia que eu comando”, como diz o ministro Flávio Dino — e se fizesse uma coisa dessas o comandante Dino deixaria sua carreira congelada até o Dia do Juízo Universal. Também não dava para colocar no relatório que as imagens comprovam a anunciada agressão a Moraes. Optou-se, então, por apresentar ao público pagante um documento que poderia ter sido escrito no laboratório do Dr. Frankenstein. A análise da PF, já no começo, contém um dispositivo de autodestruição — diz, com todas as letras, que se trata de “uma interpretação parcial” daquilo que o vídeo mostra. A partir daí, não se salva mais nada.

José Antonio Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

A PF diz que os acusados tiveram, segundo a sua “expressão corporal”, uma “atitude hostil” em relação ao ministro Moraes, que “contribuiu sobremaneira” para “uma aparente agressão física”. O que seria uma “aparente agressão”? É uma agressão ou não é, pelo que está no vídeo? Não se informa. Segundo o relatório, os acusados “podem ter” ofendido (“e mesmo caluniado”) o ministro, “salvo melhor juízo”. Ou seja: pode ser que não tenham feito nada. Não se entende, igualmente, como é possível saber se foi dita uma ofensa, ou calúnia, se o vídeo não tem som. Não há nenhuma menção à análise labial, ou a qualquer outra técnica de perícia, do começo ao fim do documento — é só impressão, “salvo melhor juízo”. O agente menciona “um aparente tapa”. Fala numa “sequência de gestos ou verbalizações”. Menciona uma “postura que chamou a atenção”. Diz que o “aparente tapa” que teria sido dado no filho do ministro “atingiu o rosto (ou os óculos)” da vítima. O rosto ou os óculos? Também não se diz. Quanto aos óculos, especificamente, o documento diz que eles podem ter sido “deslocados” do rosto do jovem agredido; também podem ter “saído” de “sua face”. Relata, enfim, que na sequência dos fatos não foi possível ver o que aconteceu, porque um carrinho de lixo aparece no vídeo e oculta os envolvidos. Só isso, em 51 páginas? Só isso.

Foto: Reprodução/Redes Sociais

Nenhuma investigação criminal, pelo que se sabia até hoje, se destina a registrar o que a polícia acha que aconteceu, ou a interpretar o que aconteceu. Sua única função legal é apresentar fatos — ou então dizer que não foi possível apurar esses fatos. Também não se pode apresentar com cara de prova pericial procedimentos que não passaram por perícia técnica, como apontou a associação dos peritos criminais da União. “As imagens não foram objeto de qualquer análise pericial ou técnicas de aprimoramento ou tratamento de imagens”, dizem os peritos. Na sua avaliação, o relatório da PF não atende “as premissas de imparcialidade” e não tem, como seria obrigatório por lei, “qualquer viés de confirmação”. As suposições da polícia no atentado à democracia cometido no Aeroporto de Roma, em circunstâncias normais, não seriam aceitas por um juiz em começo de carreira, em nenhuma comarca de interior. Mas este é o Brasil de 2023. Confissões escritas de corrupção, como acaba de se ver no caso da construtora Odebrecht, são consideradas “imprestáveis” pelo mesmo ministro Toffoli. Mas a “atitude hostil”, a “aparente agressão” e o “aparente tapa” são incluídos num inquérito que está sendo tocado em pleno Supremo Tribunal Federal — onde a sentença final, quando vier, não estará sujeita a nenhum tipo de recurso.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-186/as-imagens-imaginarias/

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