
Por Nuno Vasconcellos (*)
O mais razoável que se pode dizer a respeito da decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que, na quarta-feira passada, anunciou tarifas de 50% sobre todo e qualquer produto importado do Brasil e ameaçou aumentar a punição caso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aplique o princípio da reciprocidade e sobretaxe artigos americanos, é que — para não fugir ao lugar comum — estamos diante de um daqueles conflitos que todos sabem como começam. Mas ninguém pode dizer como terminarão.
Tomada a pretexto de punir o Brasil pelo tratamento que vem sendo dado pela Justiça ao ex-presidente Jair Bolsonaro — classificado na carta como uma “vergonha internacional” —, a decisão, na verdade, teve motivações que vão muito além desse fato.
A propósito, imaginar que o presidente do país mais poderoso do mundo tenha tomado uma decisão dessa gravidade tendo como motivação defender o ex-presidente do Brasil ou para atender aos apelos de seu filho Eduardo — que abandonou o mandato de deputado federal e foi cuidar dos interesses do pai em território americano — é dar a Bolsonaro um poder, um prestígio e uma relevância internacional que a esquerda sempre negou que ele tivesse…
Imaginar que Trump só agiu para defender Bolsonaro é ignorar o longo caminho de desentendimentos que fez a situação chegar ao ponto em que chegou.
É evidente que a ação de Trump é consequência de um conjunto de ações que lembram o enredo do livro A Marcha da Insensatez, da historiadora americana Barbara W. Tuchman, cujo título foi tomado emprestado neste artigo. No livro, ela analisa uma série de decisões tomadas ao longo da história por governos que, no final das contas, se voltaram contra os interesses de seus próprios países. No caso da decisão anunciada na semana passada, ela é consequência de uma série de desavenças, rusgas e pirraças que vinham se avolumando entre Trump e Lula — que podem até deleitar os apoiadores mais radicais de um e do outro, mas não fazem bem a seus países.
As desavenças, a princípio superficiais, se tornaram evidentes ainda durante a campanha que conduziu o americano de volta à Casa Branca, no ano passado. No calor da disputa, Lula não só declarou publicamente sua “torcida” por Joe Biden — o democrata que, àquela altura, disputava com Trump a corrida presidencial — como ainda tocou num ponto que, há muito tempo, desagrada aos Estados Unidos.
“Ele chegou a dizer”, disse Lula, referindo-se a Trump, em uma entrevista à rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, “que se um país quiser escapar do dólar como moeda de referência comercial, que ele vai punir o país. Ele não é presidente do mundo”.
As provocações recíprocas não cessaram com a posse de Trump. Elas se acentuaram e, nos últimos meses, passaram a ter como pano de fundo as ações da Justiça brasileira, apoiadas e até estimuladas pelo governo, contra Bolsonaro — que sempre teve boas relações com o republicano.
Outro ponto que pesou para azedar ainda mais a relação foi a defesa intransigente que o Brasil tem feito do Brics — o bloco econômico liderado pela China, que tem a Rússia como coadjuvante e nunca contou com a simpatia dos Estados Unidos. Entre os integrantes do bloco, o Brasil é o que mais propaga a importância do Brics e o que mais defende o papel desse consórcio de economias emergentes como contraponto ao poderio econômico americano.
E mais: entre os sócios originais do Brics, o Brasil, pelos compromissos que assumiu no âmbito do Mercosul, é o único que não negocia acordos bilaterais específicos com os Estados Unidos. Todos os demais — Rússia, Índia, China e África do Sul — fazem questão de deixar claro que o entendimento entre o bloco não exclui as vantagens que procuram buscar no comércio com os Estados Unidos.
Ricos contra pobres
A decisão de taxar os produtos brasileiros em 50%, de qualquer forma, já seria absurda caso Trump tivesse admitido que o objetivo da ação era lançar uma advertência dos países que agem contra os interesses americanos.
Tendo se baseado em argumentos de natureza política, ela se torna completamente fora de propósito. Muitos fatos ainda acontecerão em torno dessa história, mas, seja qual for o rumo que os acontecimentos tomarão nas próximas semanas, ainda é cedo para apontar, como vem sendo feito por muita gente, o impacto da ação sobre a política brasileira.
Desde o anúncio da decisão de Trump, na quarta-feira passada, uma opinião vem sendo dita em tom de verdade pelos quatro cantos do país. Segundo essa visão, a iniciativa de Trump e o peso das medidas anunciadas transformou o Brasil em vítima e funcionou como um presente a Lula. O presidente reagiu às medidas de Trump afirmando que o Brasil não aceita ser tutelado por ninguém.
O efeito inicial desse tipo de declaração no calor dos acontecimentos, como se sabe, costuma ser sempre positivo para a imagem do governante agredido. Se essa situação significará, no final das contas, uma vitória sólida e duradoura depende de fatores que nem sempre são claros no primeiro momento.
O Palácio do Planalto e seu aparato de marketing, como é natural que aconteça, se apoiarão nesse tipo de visão com todas as forças e farão o que estiver a seu alcance para culpar Trump por tudo de ruim que existe no Brasil e no mundo.
Ações concretas nesse sentido, por sinal, foram tomadas ainda no calor do anúncio das medidas. Um artigo assinado por Lula, distribuído à imprensa internacional e publicado na sexta-feira passada por oito dos jornais mais prestigiados do mundo — entre eles o francês Le Monde, o inglês The Guardian e o italiano Corriere della Sera — defende a conhecida posição de Lula a respeito do enfraquecimento das instituições multilaterais e critica o peso da decisão americana. Mas, em relação às críticas ao fato em si, se limitou a dizer que “tarifaços desorganizam cadeias de valor e lançam a economia mundial em uma espiral de preços altos e estagnação” — sem se aprofundar em referências diretas às medidas.
Os marqueteiros esperam, daqui por diante, debitar na conta de Trump e dos bolsonaristas que aplaudiram as medidas todos os tropeços que têm sido frequentes na condução da política econômica brasileira. E utilizar a prepotência do americano para alimentar a narrativa de “ricos contra pobres” que tiraram da cartola para justificar o apetite tributário descomunal do governo. A ideia é se apegar a esse discurso para tentar reverter a queda de popularidade que tem marcado o governo petista nos últimos meses.
Se a estratégia do maniqueísmo, agora turbinada pelo ato exagerado de Trump, dará certo ou não é algo que dependerá dos movimentos de ação e reação que vierem a ser feitos daqui por diante. Uma boa campanha com essa inspiração pode, sem dúvida, ajudar Lula a recuperar a popularidade perdida. Mas não será suficiente. Também será necessário que o Ministério da Fazenda faça sua parte e passe a demonstrar a acuidade que tem faltado diante dos problemas econômicos. O marketing é importante. Mas quando atua sozinho, sem apoio na realidade, perde boa parte de sua capacidade de fazer milagres…
Limites da paciência
A tensão que se seguiu à carta de Trump tanto pode se estender por muito tempo quanto ser encerrada de uma hora para outra — afinal, não seria a primeira vez que o presidente dos Estados Unidos voltaria atrás de uma decisão estrepitosa como essa. Na quinta-feira passada, ao comentar o assunto em entrevista à imprensa brasileira, Lula afirmou que pretende negociar uma saída para a crise, mas não tem o que conversar com Trump no momento.
Seja como for, é lamentável que a situação tenha chegado ao ponto em que chegou. Pela proximidade histórica que sempre marcou a relação entre os dois países e pela importância estratégica que um tem para o outro, chega a ser triste acompanhar o atual distanciamento. A verdade é que, não por razões pessoais mas pelo que um e outro representam, o clima nunca foi bom entre Lula e Trump. A impressão que se tinha, de que um não fazia a menor questão da companhia do outro, acabou se refletindo sobre as relações entre os dois países.
No caso específico de Lula, forjado na luta sindical dos anos 1970 e 1980, que via o “imperialismo ianque” como o inimigo número 1 da humanidade, a convivência com a Casa Branca nunca passou de uma formalidade que era obrigado a cumprir devido à importância comercial dos Estados Unidos para o Brasil.
Como se não bastasse a preferência pessoal do presidente, os chefes da diplomacia escolhidos por ele, em vez de procurar reduzir o calor, puseram ainda mais lenha na fogueira. Eles abandonaram de vez o princípio do pragmatismo responsável, que ao longo de anos deu prestígio ao Itamaraty, para assumir o papel de uma agência de defesa do tal de “Sul Global” — seja lá o que isso significa.
Na outra ponta, Trump — que considera o comunismo e o socialismo, com os quais Lula sempre flertou, como males a serem combatidos — sempre manteve sobre os demais países do mundo, inclusive o Brasil, um ar de superioridade que cheira a arrogância. E, pior do que isso, ele sempre demonstrou um desconhecimento profundo da realidade brasileira — sendo que alguns trechos da carta endereçada a Lula revelam a ignorância ou a má-fé de seu governo no que se refere ao comércio entre os dois países.
O líder americano diz que essa relação tem sido marcada por “políticas e barreiras tarifárias e não-tarifárias do Brasil” — quando até a Estátua da Liberdade sabe que as barreiras sempre foram rigorosas por parte dos Estados Unidos. Diz, também, que essa política vem “causando déficits comerciais insustentáveis contra os Estados Unidos” e que “esse déficit é uma grande ameaça à nossa economia e, de fato, à nossa segurança nacional!”. Afirmações como essas só podem ser frutos da intenção de atribuir ao adversário a culpa pelos próprios excessos.
Aviões da Embraer
Seja como for, a economia brasileira tem mais a perder do que a americana com o prolongamento da crise. Feliz ou infelizmente, o Brasil não tem e nunca teve sobre a economia americana todo o poder mencionado por Trump. A recíproca, porém, não é verdadeira.
Os Estados Unidos são, e deverão continuar sendo por muito tempo, o segundo maior parceiro comercial do Brasil — e isso dá a eles um peso enorme nessa relação.
Em 2024, as exportações para o mercado americano somaram US$ 40,3 bilhões, correspondendo a 12% do total das vendas brasileiras ao exterior. O resultado significou um crescimento de 9,3% em relação a 2023. Já as importações de artigos americanos pelo Brasil alcançaram US$ 40,6 bilhões, representando 15,5% do total. Do ponto de vista dos valores envolvidos, como se vê, a situação é de empate técnico, com ligeiríssima vantagem para os Estados Unidos.
A distância para a China, que compra mais ou menos US$ 100 bilhões de dólares em produtos brasileiros, é considerável. A diferença é que, enquanto os chineses adquirem soja in natura, minério de ferro e outras commodities, os Estados Unidos recebem produtos de altíssimo valor agregado.
É o caso dos aviões da Embraer, dos motores da WEG, dos transformadores da filial brasileira da Siemens e uma série de mercadorias feitas por companhias instaladas no Brasil que, sem sombra de dúvida, acompanham com preocupação o desenrolar dos acontecimentos. O enfraquecimento das relações comerciais com os Estados Unidos representaria um baque não só pelo valor que movimentam, mas, também, por atingir o setor mais moderno da economia nacional.
Mala diplomática
O fato, porém, é que, a despeito dessa importância, o governo do Brasil nunca fez, desde a posse de Trump, em janeiro deste ano, um único gesto de aproximação em direção à Casa Branca. O único movimento feito nesse sentido foi uma carta protocolar, encaminhada pelo chanceler Mauro Vieira, a seu correspondente americano, o Secretário de Estado Marco Rubio. Isso mesmo! Uma carta!
Num mundo conectado por redes que eliminaram distâncias e facilitaram o diálogo global, o chanceler escolheu se comunicar com seu equivalente americano pela mala diplomática. Ou seja, pelo mesmo canal que nossos antepassados utilizaram no dia 26 de maio de 1824, há pouco mais de 200 anos, data que marca o início às relações formais entre os dois países.
Quem mencionou a carta e admitiu que não houve qualquer outro movimento de aproximação em direção a Rubio foi o próprio Vieira — dando a entender que, para o Itamaraty, se relacionar com o Irã, a Venezuela ou com a Etiópia é mais importante do que manter relações com a maior economia do mundo. O problema nem é o fato em si, mas a naturalidade com que a diplomacia brasileira vem tratando esse afastamento.
As posições antiamericanas dos governos petistas brasileiros são históricas, mas eram mantidas sob o manto da discrição durante a administração de Joe Biden. Mas elas sempre estiveram presentes e incluíram até mesmo aquilo que, hoje, parece incomodar tanto ao Brasil: ou seja, críticas à Justiça do outro país. No dia 19 de setembro de 2023, por exemplo, no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, Lula afirmou com todas as letras que “um jornalista, como Julian Assange, não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima”.
Na época, Assange se encontrava preso, depois de julgado e condenado com base nas leis americanas, por ter divulgado documentos secretos que comprometiam a segurança nacional. Mas Lula não se fez de rogado e, assim como Trump faz agora em relação ao tratamento dado a Bolsonaro, desaprovou uma decisão da Justiça dos Estados Unidos.
Depois da posse de Trump, as críticas por parte do governo brasileiro tornaram-se mais ostensivas. Isso não quer dizer, porém, que Lula e seu governo sejam os únicos culpados pela situação ter chegado ao ponto em que chegou. O presidente americano e seu estilo diplomático, que combina sua irrefreável incontinência verbal com o uso do “big stick” — ou o “grande porrete” que caracterizou a política externa do presidente Theodore Roosevelt Jr., no início do Século 20 — nunca fez questão de melhorar o clima.
Trump age como se sua vontade fosse a única que conta no mundo e como se os países com os quais se relaciona tivessem que escolher entre acatá-lo ou arcar com as consequências. Já em sua primeira manifestação pública a respeito do Brasil, no dia de sua posse, 20 de janeiro, ele deixou claro que o relacionamento deveria ser pautado pela submissão aos interesses dos Estados Unidos. “Eles precisam de nós muito mais do que precisamos deles. Não precisamos deles. Eles precisam de nós. Todos precisam de nós”, disse Trump, em resposta a uma pergunta sobre o tratamento que daria ao Brasil e à América Latina.
Israel e Irã
De lá para cá, as divergências se acentuaram a ponto de, se alguém quiser saber onde um está na ordem geopolítica e econômica mundial, basta olhar a direção oposta à que está o outro. As divergências se manifestam em relação à guerra na Faixa de Gaza — na qual o Brasil, depois de uma condenação quase envergonhada às ações dos terroristas que invadiram o território israelense, estupraram mulheres, assassinaram crianças e civis e sequestraram centenas de inocentes, se tornou um defensor intransigente do Hamas. Os Estados Unidos, enquanto isso, sempre estiveram ao lado de Israel.
O antagonismo também envolve a questão do Irã — quando o Brasil foi o único país ocidental a condenar sem atenuantes o bombardeio da Força Aérea Americana às instalações nucleares do governo dos aiatolás. Envolve a posição em relação à ditadura venezuelana, de Nicolás Maduro (vista com simpatia pelo governo brasileiro e condenada pelo governo americano), e ao governo da Argentina, de Javier Milei (vista com simpatia pelo governo americano e criticado pelo governo brasileiro).
Envolvem a questão ambiental e o aquecimento global. Envolvem posturas comerciais importantes para os dois países — sendo que a mais sensível delas diz respeito ao uso do dólar como moeda comercial internacional. De qualquer forma, a confusão está armada e é preciso desativar a bomba. E, independentemente da decisão que a Justiça venha a tomar a respeito de Bolsonaro — que, seja qual for, poderá ser discutida ou criticada, mas terá que ser acatada —, será preciso desobstruir os canais de diálogo e encontrar uma solução para um problema que, se for prolongado, terá consequências desastrosas para a economia brasileira.
(*) Empresário luso-brasileiro
Fonte: https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/nuno-vasconcellos/2025-07-13/a-marcha-da-insensatez.html