A ficção do ministro Barroso

Eis aí a essência dessa visão do mundo: o principal perigo para a democracia é a democracia. Ela pode levar o povo a escolher governos não autorizados pelo STF, e isso é inegociável

Ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal - Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Por J. R. Guzzo (*)

O Brasil não tem, há mais de cinco anos, um supremo tribunal de Justiça. O que tem continua sendo uma guarda suprema, mas deixou de ser um tribunal e, obviamente, não passa pela cabeça de ninguém ir até lá em busca de justiça. Em vez do STF que existia até a eleição de Bolsonaro para a Presidência da República, o que existe agora é um Comissariado de Segurança e Defesa do Regime. Sua única função efetiva é garantir, com o apoio da força armada, que as leis em vigor no Brasil nunca vão ser aplicadas em favor de quem discorda do governo, dos próprios ministros e dos interesses de ambos. A segunda parte de sua obra é assegurar que qualquer lei vai ser violada se estiver atrapalhando o regime Lula-STF. A grande inovação de tudo isso para a ciência política é a criação da vacina antidireita. Como a direita, que hoje só é disponível na embalagem “extrema direita”, passou a ameaçar a democracia porque também passou a ganhar eleições, o “Estado Democrático de Direito” só pode ser salvo abolindo-se os direitos dos direitistas.

“A democracia tem lugar para todos, menos para os que são contra a democracia”, determinou o presidente do STF em sua última encíclica, desta vez proclamada na Universidade de Oxford. É a alma soviética que hoje inspira a nossa “suprema corte”, como se costuma dizer. “Os que são contra a democracia” são os que discordam das decisões da junta de governo STF-Lula — não podem, portanto, ter a proteção da lei, pois, na doutrina oficial ora vigente, vão “usar” os seus direitos constitucionais para fazer política, ganhar eleições e acabar com a democracia quando chegarem ao governo. Há diversos casos, nos últimos anos, em que a direita ganhou a eleição e foi para o governo — inclusive aqui mesmo, no Brasil, em 2018. Não há nenhum caso em que tenha criado uma ditadura depois de eleita. Mas é aí que está: esse é um raciocínio de direita e, portanto, antidemocrático. Argumento, numa democracia-modelo como a que o STF inventou para o Brasil, só se for autorizado pelo ministro Barroso e seus pares no Comissariado.

O modo de operar do STF atual não tem similares em nenhuma democracia do planeta. Não se trata aqui da folha de pagamento com quase 3 mil funcionários (já houve até auxiliares de desenvolvimento infantil nesse mar de gente), nem do custo de R$ 1 bilhão por ano e outros sinais explícitos de subdesenvolvimento. Isso é a senzala geral do Brasil, para a qual não há cura conhecida. O que chama a atenção no Supremo de hoje é sua organização como chefatura nacional de polícia. Há o Centro de Enfrentamento aos Direitos Individuais e às Liberdades Públicas, chefiado pelo ministro Alexandre de Moraes — que acumula o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia no braço eleitoral do STF, o TSE. Há o Centro de Enfrentamento às Punições por Crimes de Corrupção, a cargo do ministro Dias Toffoli. Há o Centro de Enfrentamento às Leis Aprovadas Pelo Congresso e o Centro de Enfrentamento à Oposição, comandados em sistema de rodízio. Há o Centro de Enfrentamento à Verdade dos Fatos — esse sob a direção do ministro Barroso.

Em sua última operação, desfechada na Universidade de Oxford, Barroso se esforçou em globalizar a ficção de que o STF criou no Brasil um modelo de democracia sem rivais no mundo neste século 21. O ministro, que também é presidente vitalício do Centro de Enfrentamento ao Bolsonarismo, conta nessa missão com a parceria da ignorância invencível do Primeiro Mundo (dos outros mundos, então, nem se fale) em relação ao Brasil. Se alguém lá fora soubesse cinco por cento do que acontece de verdade aqui dentro, o presidente do STF não conseguiria falar de cima de um caixote no Hyde Park Corner. Os fatos mostram que em 1º de janeiro de 2019 o Brasil vivia perfeitamente de acordo com a sua Constituição — ou alguém é capaz de citar algum caso concreto de violação da lei por parte do Estado naquela época? Cinco anos e meio sob a administração do STF, pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, o Brasil tem presos políticos. Tem exilados que fogem do país para escapar dos cárceres do ministro Alexandre de Moraes. Tem inquéritos policiais perpétuos.

Ninguém sabe que o ministro Toffoli pagou com dinheiro público um guarda-costas pessoal quando foi assistir à final da Champions, em Londres. O mundo também não tem ideia de uma anomalia tão extravagante que ganhou o apelido de “Gilmarpalooza”

A democracia que o ministro Barroso apresenta na Inglaterra tem censura oficial nas redes sociais, em veículos de imprensa e em produtoras de documentários. O brasileiro pode ser preso, interrogado pela polícia, ter suas contas bancárias bloqueadas, ter seu passaporte confiscado, ter o seu sigilo violado. Todas as provas contra a corrupção, mesmo incluindo confissões e devolução de dinheiro roubado, são anuladas pelo STF — o que faz do Brasil o único país do mundo com impunidade garantida por jurisprudência. Juízes que denunciam situações ou sentenças que consideram erradas são expulsos da magistratura. Num caso de flagrante violação da lei penal e dos direitos civis garantidos pela Constituição, um cidadão está preso há mais de quatro meses sem que o ministro Moraes e a Polícia Federal tenham conseguido até agora nenhuma prova das acusações que fazem a ele — e apesar de ter provado que não fez o que é acusado de ter feito. (Leia a reportagem de capa desta edição.)

O presidente do STF e todos os seus colegas do circuito de palestras que fazem pelos países ricos não mencionam a nenhum dos auditórios que o político mais popular do Brasil não pode se candidatar a eleições até o ano de 2030 — por ter falado mal das urnas eletrônicas numa conferência a embaixadores estrangeiros. Ninguém sabe que o ministro Toffoli pagou com dinheiro público um guarda-costas pessoal quando foi assistir à final da Champions, em Londres. O mundo também não tem ideia de uma anomalia tão extravagante que ganhou o apelido de “Gilmarpalooza” — um festival de altos magistrados, ministros do governo e empresários com causas no alto Judiciário que vão discutir questões brasileiras em Portugal. (O animador é o ministro Gilmar Mendes, que acumula suas funções de ministro do STF com a propriedade de uma faculdade particular de Direito em Brasília.) Em matéria de conflito de interesses, por sinal, a democracia do ministro Barroso não acha nada de errado que mulheres dos ministros trabalhem em escritórios de advocacia com causas em apreciação no Supremo.

Alberto Leite, empresário, e Dias Toffoli, ministro do STF, na final da Champions League. Toffoli pagou com dinheiro público um guarda-costas pessoal designado para acompanhá-lo na viagem à Inglaterra, entre 25 de maio e 3 de junho de 2024 | Foto: Montagem Revista Oeste/Reprodução/Redes Sociais

Isso tudo, no pensamento oficial, foi que salvou o Brasil do “populismo de direita” — o mal du siècle que no entendimento do presidente Barroso é a pior ameaça que a humanidade tem pela frente nos dias de hoje. Segundo ele, o mundo conseguiu nos últimos cem anos superar o nazismo, fascismo, comunismo, fundamentalismo religioso e outros males; no Brasil, em virtude das decisões do STF, superou o bolsonarismo. Precisaria, agora, exterminar essa extrema direita que ganha eleições livres e pretende, uma vez no governo, executar “agendas” que a maioria do eleitorado quer que sejam executadas — coisa que exigiu abertamente com o seu voto. Eis aí a essência dessa visão do mundo: o principal perigo para a democracia é a democracia. Ela pode levar o povo a escolher governos não autorizados pelo STF, e isso, para os ministros, é inegociável. Para simplificar as coisas, basta responder a uma pergunta: é possível a existência de um Toffoli num regime razoavelmente democrático? É possível ter os inquéritos sem fim do ministro Moraes? É possível haver o “Gilmarpalooza”? Não é — e o STF é o primeiro a saber que não é.

As palestras, os despachos e os comícios em circuito fechado feitos pelos ministros, quando se olha mais de perto, são um veredito político. É o que diz a linguagem que usam. Não pronunciam a palavra “liberdade”, por exemplo — a não ser para insistir que ela tem limites, está sendo abusada e precisa ser reduzida a rações de guerra. Não falam em “império da lei”. Não usam a expressão “direitos humanos”, nem “direito de defesa.” Não chamam de “baderna”, e sim de “golpe armado”, um quebra-quebra onde as armas mais pesadas, segundo a sua própria polícia, foram dois ou três estilingues. Acima de tudo, não dizem nem escrevem a palavra “justiça”.

Ministro Gilmar Mendes, organizador do “Gilmarpalooza”, um festival de altos magistrados, ministros do governo e empresários com causas no alto Judiciário que vão discutir questões brasileiras em Portugal | Foto: Andressa Anholete/STF

 (*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/about-brazil/justice-barrosos-fiction/

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