Zé das Centúrias põe o Criador na berlinda

Foto: Reprodução IA

Por Juca Taketomi

Conheci Zé das Centúrias no início dos anos 80, no bairro Cachoeirinha, em Manaus. Era um sujeito inquieto, desses que não têm papas na língua nem medo de santo de altar. Para ele, religião sempre foi sinônimo de trava no progresso intelectual, científico e tecnológico do Planeta Azul.

“Quanto mais dogma, menos telescópio”, dizia entre um copo de cerveja e um cigarro, com aquele ar de quem já nascera brigando com o mundo.

Anos depois, reencontrei Zé disposto a um novo duelo: não com os padres, pastores ou rabinos de sempre, mas com o próprio Criador do Universo, Javé. Influenciado por vários autores rebeldes, questionadores, que lia com avidez, Zé armou uma polêmica que mais parecia audiência de tribunal cósmico.

— Meu amigo, me diga uma coisa — começou, enquanto acendia um cigarro. — Que raio de Deus é esse que resolveu fabricar a humanidade com um DNA de meia tigela, meio reptiliano, meio humano?

Não me deu tempo para nenhum argumento. Ele prosseguiu: — E não bastasse essa gambiarra genética, ainda mutilou a glândula pineal, a antena que ligaria a gente ao Cosmos. Ora, amigo, isso não é criação divina, é sabotagem de fábrica. Tudo indica que Javé quis entregar a alma do homem às religiões, para elas o condicionassem e alienassem o bicho de vez.

Olhei para ele, curioso: — Mas Zé, você acha mesmo que Javé fez isso de propósito? Ele riu com sarcasmo: — Ora, meu caro, quem é que fabrica rádio sem botão de sintonia? Se o Criador queria comunicação franca, por que deixou a pineal enferrujada? Aí chegam as religiões, esses atravessadores oficiais do sagrado, e dizem: “Fale conosco que a gente repassa o recado”. E o povo acredita, de geração em geração, que precisa de mediador para se conectar ao Todo. É o maior golpe da história.

Sadismo transcendental

Zé falava com aquela verve de beira de estrada, mas o que dizia ressoava fundo. A cada argumento, parecia cutucar o próprio trono celeste. — E o pior, amigo: chamam isso de prova de fé. Fé em quê? Em um criador que nos deixa mancos na corrida cósmica só para ver se a gente tropeça no caminho? Isso não é fé, é sadismo transcendental.

Deixei que ele seguisse, sem interromper. — Veja bem, se a humanidade tivesse acesso natural às dimensões do espírito, a ciência já teria cruzado com a filosofia e a tecnologia teria virado espiritualidade aplicada. Mas não, nos deram um código genético capenga e ainda um manual de instruções cheio de excomunhão e castigo. Resultado: milênios de atraso, queimando gente na fogueira e negando a roda porque “podia ser coisa do demônio”.

Zé das Centúrias parou por um instante, respirou fundo e arrematou: — Gostaria de interpelar pessoalmente Javé para ver como ele responderia às minhas interpelações, sem insistir naquelas desculpas esfarrapadas de “mistério da fé”, porque se isso ocorresse confesso que largaria a entrevista e abriria um boteco, que pelo menos lá a gente fala a verdade sem cerimônia, sem baboseira retórica, diretamente, sem frescura.

E o Zé riu. Riu alto, como quem acabava de condenar o próprio Criador ao tribunal da ironia popular.

Nosso bate-papo ganhou um ar inesperado quando Zé das Centúrias, teatral como sempre, decidiu assumir que Javé estava presente. Javé estava invisível, claro, mas presente. Talvez a cerveja tivesse subido demais à cabeça mediúnica do Zé. Sentou-se ereto, ajeitou o colarinho inexistente e anunciou: — Muito bem Senhor Criador, sou o seu interpelador e canalizador ao mesmo tempo. Sou, antes de tudo, um democrata. A palavra é Sua.

Então, como se um vento grave atravessasse a sala, Zé encarnou a resposta solene de Javé:

— “Filho, eu vos dei a vida, vos dei a Terra e vos dei o livre-arbítrio. Cada dor é uma lição, cada injustiça é uma prova. A humanidade precisa dessas experiências para crescer espiritualmente”.

Zé não deixou por menos. — O discurso é bonito, Javé. Mas alguém já perguntou: que espécie de Pai precisa encher o filho de dor para ensiná-lo? Não dava para ensinar com amor, com clareza, com sabedoria direta? Só um criador inseguro deixa o filho tropeçar no escuro para ver se aprende a andar.

Dono do Universo

O silêncio era espesso. Zé aproveitou e sapecou mais um ataque. — Outra coisa: Na Bíblia, um livro que conta no Velho Testamento apenas a história dos judeus e nada mais, está escrito que o Senhor se ofende com bajulação ou falta dela. Quer dizer que o Dono do Universo precisa de elogio humano para se sentir bem? Isso é comportamento de divindade ou de coronel nordestino esperando tapinha nas costas?

Literalmente Zé estava endiabrado. Fez uma pausa, tragou o cigarro, bebeu mais um pouco de cerveja e continuou. — E mais: que justiça é essa que pune até a terceira geração? Como pode um Criador universal se comportar como cobrador de dívida de feira, jogando boleto espiritual no colo do neto? Isso não é justiça, é vingança mal disfarçada.

A voz solene voltou, pela boca do próprio Zé:— “Filho, não compreendeis os desígnios. É mistério profundo. A vossa pineal limitada não alcança a grandeza dos meus planos”.

Zé sorriu com deboche. — Ah, aí está! O velho truque do “mistério”. Mas quem foi que mutilou a pineal em primeiro lugar? Se a glândula fosse plena, conversaríamos direto com o Cosmos, sem atravessadores, sem religião fazendo plantão de porteiro. Mas o Senhor preferiu entregar a chave do cofre às seitas, que agora mandam e desmandam em seu nome. É ou não é uma manobra de controle?

Olhei para Zé, estupefato. Ele se inclinou para mim e disse em voz baixa, quase confidencial: — Percebe, amigo? Javé virou refém do próprio argumento. Se responde, se enrola. Se se cala, confirma. E no meio disso, a humanidade segue acreditando que a dor é escola, quando podia ser universidade cósmica de primeira linha, universidade enxuta, inoxidável mesmo.

Zé ergueu o dedo em riste, como quem dita sentença final: — Se Javé quiser manter o título de Criador, vai ter de atualizar o currículo. Porque com esse DNA ambíguo e essa pineal avariada, a gente nunca vai passar de estagiário no cosmos. Putzgrila, cara.

E caiu na gargalhada. Gargalhada que era como veredito de tribunal, onde o Criador, pela primeira vez, parecia estar no banco dos réus.

Quase ameaçador

Javé, talvez cansado das provocações, resolveu erguer a voz como nos velhos tempos bíblicos, com um peso quase ameaçador.

— “Filho, vós não compreendeis o alcance do meu projeto. Fiz-vos com DNA ambíguo para que enfrentásseis dilemas morais. A pineal limitada é a chave do aprendizado lento, porque apenas na escuridão o espírito valoriza a luz. A dor é mestre, a injustiça é prova, e o silêncio é a linguagem que vos conduz à eternidade”.

Zé arregalou os olhos, fingindo reverência. Depois, encostou-se na cadeira e soltou a ironia: — Então é isso? O DNA foi feito torto de propósito? A pineal, serrada com serrote divino, virou “estratégia pedagógica”? E a dor, um professor contratado às pressas? Ora, doutor Javé, isso não é plano cósmico, é sadismo travestido de espiritualidade. Ah, conta outra, vai…

Zé fez um gesto largo com as mãos. — E esse papo de “na escuridão se valoriza a luz”… Quem inventou a escuridão foi o Senhor mesmo. Não venha agora dizer que foi favor. É como derrubar a casa e chamar isso de oportunidade de reforma.

Javé insistiu, mais grave ainda: — “O livre-arbítrio é vosso. Eu apenas vos dei as condições. Cada escolha errada é reflexo de vossa imperfeição. Através das quedas, ascendereis”.

Zé balançou a cabeça, rindo de canto.— Livre-arbítrio com DNA sabotado e antena cósmica desligada? É como dar a um cego um mapa e depois culpá-lo por se perder. Onde está a justiça nisso? Se o Criador é amor, por que age como cobrador de penitência, terceirizando a falha para a criatura?

O silêncio pesou. Eu, jornalista, apenas observava, com a sensação de assistir a um duelo improvável entre botequim e trono celestial.

Zé ergueu o tom final, como advogado popular que fecha a acusação: — Senhor Javé, se tudo isso é “plano superior”, o resultado não convenceu. A humanidade ficou presa em milênios de atraso, ajoelhando para dogmas, enquanto poderia estar erguendo pontes para o cosmos. Se a meta era evolução, o método foi tropeço. E eu, Zé das Centúrias, digo: se a divindade tem que esconder-se atrás de mistérios, é porque não tem resposta que se sustente diante da razão. Tenho dito.

Zé acendeu mais um cigarro, tragou, sorveu outra cerveja e riu de novo. — Eis a verdade amigo: no nosso tribunal, Javé não passa de réu em causa própria. E deixou a fumaça pairar, como quem assinava a sentença definitiva.

Amor que vira descaso

Diante da saraivada de ironias, Javé pareceu abandonar o tom severo e, enfim, recorrer à última carta da manga:

— “Filho, se nada vos convence, lembrai-vos ao menos disto: tudo o que criei foi por amor. O Universo é expressão de minha doação infinita. Cada estrela, cada ser, cada sopro de vida… tudo é amor que se expande. Não deveis julgar os meios, mas compreender o fim: o retorno à minha essência amorosa”.

Zé das Centúrias escutou com calma, até fechou os olhos por alguns segundos, como se sentisse o peso daquela palavra. Depois, abriu um sorriso enviesado e começou o contra-ataque:

— Amor, amor, amor… bonito isso, Javé. Mas, com todo respeito, amor que não administra bem vira descaso. Veja: a humanidade está aí, sangrando em guerras, disputando pão e território, adoecendo em filas de hospital. Se isso é resultado do seu “amor incondicional”, me diga: cadê o gerenciamento? Um Criador que diz amar, mas não provê condições mínimas de comunicação e equilíbrio, soa mais como um pai ausente do que como fonte de ternura.

Zé ergueu o dedo, teatral. — O Senhor fala que o Universo inteiro é amor. Pois bem, mas para nós, aqui na Terra, esse amor parece terceirizado às religiões. E as religiões, como sabemos, viraram donas do cartório. Assinam em seu nome, cobram taxa de anjo, vendem indulgência e distribuem inferno a prazo. O resultado? Amor transformado em controle, compaixão virando chantagem.

Javé, numa última tentativa, murmurou pela boca de Zé: — “Amor é semente. Cabe a cada um cultivá-la”.

Zé riu alto, sacudindo os ombros. — Pois aí está o problema, Javé: se amor é semente, o Senhor esqueceu de mandar manual de plantio. Deu-nos o DNA torto, a pineal problemática, a escuridão como sala de aula… e agora diz que cabe a nós cultivar? Isso não é pedagogia, é improviso cósmico.

Acendeu mais um cigarro, deu uma tragada lenta e, olhando para mim, decretou:

— Se o Criador é amor, como gosta de dizer, então que desça do trono, vá às ruas, entre no ônibus lotado, sinta a fome que grita na barriga das crianças e administre melhor esse patrimônio chamado Terra. Porque amor sem gestão é poesia bonita, mas não resolve o drama humano. E completou: — Amar é fácil, Javé. O difícil é cuidar.

Briga de consciência

Depois de tanto duelo retórico, Zé das Centúrias ficou mudo. Deixou o cigarro repousar no cinzeiro, como se o gesto fosse uma pausa para reflexão. Eu aproveitei o momento e perguntei: — Então, Zé,  vale a pena essa briga toda com Javé?

Ele suspirou fundo, como quem confessa uma contradição íntima.— Vale, sim. Vale porque não é uma briga de ofensa, é uma briga de consciência. Quando cutuco Javé, não é para diminuir a divindade, é para lembrar à humanidade que já passou da hora de largar a bengala das religiões e andar com as próprias pernas.

Puxou do bolso uma dessas frases que pareciam ensaiadas para cair como sentença:

— Se Javé existe e é amor, ótimo. Mas se a gente continuar esperando que Ele resolva tudo, nunca sairemos do jardim de infância cósmico em que nos enfiamos.

Ajeitou-se na cadeira, o olhar faiscando ironia e ternura ao mesmo tempo, sem mais copo de cerveja na mão. — Sabe de uma coisa, talvez a grande resposta sobre tudo que perguntei a Javé seja a gente mesmo. O dia em que abrirmos a pineal com conhecimento, ciência e espírito, vamos ouvir o Universo responder em coro. E, cá entre nós, quando isso acontecer, Javé vai ter que se adaptar às nossas perguntas,  e não o contrário.

Sorriu de canto, como quem se diverte com o paradoxo. — Porque, amigo, no fundo eu sei: Javé não é meu inimigo. Ele é meu pretexto. É a parede na qual bato minhas ironias para ver se alguém acorda.

Talvez Zé das Centúrias quisesse apenas lembrar e convencer Javé de que a criatura evoluiu, que a centelha divina dentro do homem começa a desconfiar do roteiro que lhe deram. No fim, sua heresia não era contra Javé, mas contra a mediocridade com que a humanidade traduziu seus deuses.

Entre a pineal atrofiada e o livre-arbítrio torto, o que Zé pedia era simples: um pouco mais de coerência entre o amor pregado nos templos e a miséria estampada nas ruas.

E, quem sabe, Javé tenha se espantado com a ousadia e a lucidez escondida em seu deboche.

No fim das contas, a pergunta maior do Zé continua em aberto, continua um desafio, querendo saber quem criou quem: o divino fez o homem ou o homem inventou o divino para suportar o caos?

Por isso, Zé provoca a razão sem desprezar o mistério. E torce por uma humanidade que precisa pensar mais do que se ajoelhar.

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