
Por Nuno Vasconcellos (*)
Quando se trata de política externa e de diplomacia, como qualquer calouro do Instituto Rio Branco pode confirmar, aquilo que se diz e se faz em público raramente coincide com os detalhes acertados nos bastidores.
Sendo assim, a chance de que o encontro entre o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o dos Estados Unidos, Donald Trump, numa das antessalas da Assembleia Geral das Nações Unidas, na terça-feira passada, em Nova York, tenha acontecido por obra do acaso é remota.
Tão remota quanto a possibilidade de que, depois do abraço que trocaram e da “química” que se manifestou entre eles naquele momento, o fim dos desentendimentos comerciais e geopolíticos entre os dois países esteja ao alcance de um aperto de mãos. Há um longo caminho a ser percorrido antes que a relação histórica entre o Brasil e os Estados Unidos volte à normalidade — e se a diplomacia brasileira insistir em algumas de suas práticas atuais, pode ser que a situação fique ainda pior do que estava.
Pelo que veio à tona no decorrer da semana passada, o encontro não foi tão casual assim. Antes que Trump o trouxesse ao conhecimento do mundo, durante seu discurso na Assembleia da ONU, diplomatas agiram e cuidaram para que os dois líderes ficassem frente a frente por alguns instantes, sem que houvesse risco de constrangimento para qualquer um dos dois. O fato é que, pelo menos no primeiro momento, tudo aconteceu conforme o planejado. Detalhe: àquela altura, Trump já conhecia os detalhes do discurso concluído por Lula minutos antes de ele entrar no auditório para dar o seu recado. E, pelo que parece, não considerou as críticas que ouviu do brasileiro motivo suficiente para fazê-lo desistir de propor o entendimento.
Uma imagem colhida por um fotógrafo da ONU mostra o presidente americano, pouco antes do encontro “casual”, com os olhos fixos em um aparelho de TV que exibia a imagem de Lula durante seu discurso no evento. Trump, que não fala português, não estaria tão atento se não contasse com alguém para traduzir o que estava ouvindo. Mesmo sem chamar os Estados Unidos pelo nome ou fazer qualquer referência direta ao presidente americano, Lula fez as críticas que julgou necessárias e expôs sem rodeios todas as suas diferenças em relação a Trump e seu governo.
O abraço que trocaram, é evidente, não pôs um ponto final nos desentendimentos entre os dois países. Longe disso. Mas foi, talvez, a demonstração mais concreta de que a situação possa evoluir nessa direção desde que as desavenças se tornaram explícitas — ainda antes da volta de Trump à Casa Branca, em janeiro deste ano.
Mas a reconstrução da relação bicentenária entre os dois países exigirá a revisão de conceitos e a escolha de novos caminhos por um e por outro. De qualquer forma, como disse o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em novembro de 1942, logo após o desembarque dos exércitos aliados no Norte da África, na Segunda Guerra Mundial, “isso não é o fim. Nem sequer é o começo do fim. Mas é, talvez, o fim do começo”.
Tabuleiro de Xadrez
Minutos depois do encontro, quando seu discurso diante da diplomacia do mundo inteiro já caminhava para o final, Trump mencionou o encontro com Lula. Também sem falar o nome do “líder do Brasil”, disse que “tivemos uma boa conversa e concordamos em nos encontrar na semana que vem, se isso for do seu interesse”. E, logo depois, acrescentou: “Lamento muito dizer isso: o Brasil está indo mal e continuará indo mal. Eles só conseguem se sair bem quando trabalham conosco. Sem nós, eles fracassarão, assim como outros fracassaram”.
Ao elogiar Lula, manifestar para o mundo sua intenção de conversar e fazer publicamente um convite para um encontro, Trump não chegou a aplicar um xeque-mate em Lula — que nos dias anteriores à Assembleia da ONU vinha se referindo, sempre que podia, à falta de interesse da Casa Branca em dialogar. Esse argumento, agora, não existe mais. O que o presidente dos Estados Unidos fez, para continuar usando uma metáfora dos tabuleiros de xadrez, foi se apossar das pedras brancas e tomar a iniciativa do movimento. E, por consequência, deixar por conta de Lula e da diplomacia brasileira a obrigação de reagir e fazer o movimento seguinte. No jogo de xadrez, quem joga com as brancas tem a primazia do ataque.
Até o final da semana passada, o Itamaraty, pelo menos publicamente, não havia reagido à investida de Trump. Sendo assim, a decisão de convidar o Brasil às portas do diálogo, anunciada por ele, continuava rendendo frutos positivos para os Estados Unidos. Para começo de conversa, o convite deixou em segundo plano o brilho do discurso que Lula havia acabado de fazer na abertura da Assembleia Geral da ONU.
O Brasil, por uma tradição que remonta a 1955, é sempre o primeiro país a discursar nos encontros das Nações Unidas — e desde 1982, no governo do general João Figueiredo, esse papel normalmente cabe ao próprio presidente da República. O presidente Lula havia acabado de exercer essa prerrogativa com um discurso em que expunha cirurgicamente as posições de seu governo em relação ao panorama mundial. Esse ponto de vista foi, talvez, o mais claro e preciso dos pronunciamentos que ele fez nas onze vezes que já ocupou a tribuna das Nações Unidas.
Na linguagem polida que convém aos discursos diplomáticos de alto nível, Lula reafirmou as linhas de atuação que seu governo imprimiu à política externa brasileira.
O presidente apontou com clareza as principais divergências que existem entre os dois países. Lula se queixou das “sanções arbitrárias” que o Brasil vem sofrendo; falou do multilateralismo como a solução para os problemas do mundo, defendeu a regulação da internet e manifestou preocupação diante da “equiparação entre criminalidade e terrorismo” — um ponto sobre o qual Trump tem insistido, sobretudo em relação ao tráfico de drogas feito a partir da Venezuela.
Também sem mencionar o Estado de Israel, Lula disse que nenhuma “situação é mais emblemática do uso desproporcional e ilegal da força do que a da Palestina”. Se queixou da ausência do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, “impedido pelo país anfitrião” de comparecer à Assembleia. Reafirmou a independência do Judiciário brasileiro, falou em soberania… enfim, tocou em todos os pontos possíveis e pontuou as diferenças entre os dois países sem, no entanto, propor ou reivindicar a abertura de diálogo para a solução dos problemas.
Só que Trump devolveu a bola para ele e o convidou para o jogo. Se o governo brasileiro aceitar o convite e der início à busca do entendimento, o próprio discurso de Lula nas Nações Unidas já oferece o roteiro para a discussão. Os principais pontos de divergência entre os dois países foram postos na mesa e o discurso de Trump, feito de improviso minutos depois, em diversos momentos pareceu uma resposta direta à fala do brasileiro.
Em seu discurso, Lula disse, por exemplo, que “a forma mais eficaz de combater o tráfico de drogas é a cooperação para reprimir a lavagem de dinheiro e limitar o comércio de armas. Usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento”. Trump, por sua vez, mencionou os nomes dos cartéis MS-13 e Tren de Aragua, de origem venezuelana.
E disse que “essas organizações torturam, mutilam e assassinam impunemente. São inimigas de toda a humanidade. Por essa razão, recentemente começamos a usar o poder supremo das Forças Armadas dos Estados Unidos para destruir terroristas venezuelanos e redes de tráfico lideradas por Nicolás Maduro, contra todos os bandidos terroristas que contrabandeiam drogas venenosas para os Estados Unidos da América”.
Arroubos Ideológicos
Há outros pontos, como o da questão ambiental e, principalmente, o tema delicado em torno da guerra em Gaza, em que as ideias de Trump contrastaram com as de Lula de forma eloquente. Seja como for, se o discurso do presidente brasileiro contém um roteiro para o debate entre os dois países, o discurso do presidente americano expõe os pontos que permitem concluir, de antemão, que o entendimento será difícil. E terá que incluir temas que vão muito além das questões comerciais. Os principais pontos de divergência entre os dois países foram postos na mesa e resta, agora, escolher o caminho a seguir.
Nesta hora — embora a esperança de que isso aconteça seja remota —, seria muito bom que os chefes da diplomacia brasileira abrissem mão dos arroubos ideológicos de grêmio estudantil que têm marcado sua atuação e voltassem sua atenção para aquilo que realmente interessa ao Brasil. E é aí que entra um detalhe da mais alta importância: embora tenha sido apresentada desde o início como a causa que motivou as desavenças entre os dois países, a situação do ex-presidente Jair Bolsonaro é uma peça secundária sobre o tabuleiro. E os negociadores americanos podem sacrificá-la caso os pontos que realmente orientam seus interesses sejam atendidos pelo Brasil.
Esse aspecto requer atenção e é necessário dar à posição dos Estados Unidos em relação a Bolsonaro o peso que ela tem de fato. O deputado Eduardo Bolsonaro e o jornalista Paulo Figueiredo, em suas movimentações por terras americanas, têm insistido na tecla de que as sanções e as tarifas comerciais absurdas impostas pelos Estados Unidos às importações brasileiras têm como causa exclusiva o tratamento que o ex-presidente Jair Bolsonaro vem recebendo do governo e do Judiciário brasileiros.
O certo, porém, é que há motivos muito mais relevantes do que esse por trás dos desentendimentos — e isso precisa ser esclarecido o mais cedo possível para que não se alimentem falsas expectativas em relação ao contencioso.
Condicionar a normalização das relações entre os dois países a uma anistia ampla, geral e irrestrita ao ex-presidente e aos demais condenados por crimes de natureza política no Brasil nada mais é do que uma manobra diversionista.
Quem acompanha os movimentos do Departamento de Estado americano tem a impressão de que, assim como dispensou a companhia de seu apoiador de primeira hora, o empresário Elon Musk, Trump não pensaria duas vezes antes de trocar seu apoio a Bolsonaro por avanços mais concretos em relação a questões geopolíticas muito mais preocupantes para os Estados Unidos.
Antes de prosseguir, um detalhe: se é assim — ou seja, se Bolsonaro não é o foco principal das ações americanas — como explicar a ampliação das sanções da Lei Magnitsky ao ministro Alexandre de Moraes, visto como o grande algoz do ex-presidente? Na segunda-feira passada, um dia antes de Trump propor diálogo a Lula, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos havia estendido à advogada Viviane Barci de Moraes, mulher do ministro, e à holding Lex, que concentra os negócios e as propriedades da família, os efeitos da lei, que já pesavam sobre Moraes desde o dia 30 de junho.
A impressão, quando se tem acesso a informações do Departamento de Estado, é que há pontos muito mais importantes do que as penas impostas a Bolsonaro por trás da persecução a Moraes. A investida do ministro contra as Big Techs, por exemplo, é muito mais incômoda para o governo americano do que a postura em relação ao ex-presidente.
Outra possibilidade é a de que a ampliação das sanções se destine a traçar a linha vermelha das negociações. Nesse caso, o Brasil teria que ceder em uma série de pontos nos quais tem insistido antes de conseguir suspender as punições aplicadas pelo governo americano a algumas autoridades locais. O principal desses pontos é a adesão incondicional do Brasil à bandeira do chamado “multilateralismo”.
Contradição
Esse, aliás, é um dos aspectos mais interessantes desse jogo. Quem prestar atenção às ideias expostas pelo presidente Lula nos fóruns internacionais — e o discurso na Assembleia Geral da ONU foi apenas mais uma dessas manifestações — notará que existe uma certa contradição entre as duas principais bandeiras que ele tem desfraldado. Desde o início de seu atual mandato — e fiel ao que ele defendeu em suas passagens anteriores pela presidência — Lula tem se posicionado como defensor do multilateralismo, que, para ele, é o único caminho capaz de assegurar para as economias emergentes o respeito dos países desenvolvidos. Esta é a primeira de suas bandeiras.
A questão é que, desde julho passado, quando o presidente Donald Trump anunciou a aplicação de uma alíquota de 50% sobre os produtos que os Estados Unidos importarem do Brasil, surgiu a outra bandeira — e Lula tem usado um tom de voz elevado para defender a soberania nacional.
Para o governo, as alíquotas comerciais, as sanções às autoridades e uma série de outras posturas, embora tenham sido tomadas com base em leis americanas e valham apenas nos Estados Unidos, não passam de um ataque à soberania e de uma intromissão em assuntos internos do Brasil.
Onde está a contradição? Nem é preciso recorrer aos manuais de ciência política ou de direito internacional para descobrir. Basta uma consulta ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa para saber que o substantivo “multilateralismo”, sempre mencionado por Lula, deriva do adjetivo “multilateral”, que, aplicado à economia política, se refere a algo que “é do interesse de vários países”.
Já o substantivo soberania, na acepção que interessa a esse raciocínio, se refere à “qualidade que caracteriza o poder político supremo do Estado como afirmação de sua personalidade independente, de sua autoridade plena (…) dentro do território nacional e em suas relações com outros Estados”.
O que houve, no momento atual, foi a ampliação da abrangência do conceito, que ultrapassou os limites da América Latina e se consolidou em torno do Brics — o grupo liderado pela China, que tem também a Rússia, a Índia e a África do Sul como sócios originais.
Desde a volta do presidente Lula ao poder, o Brasil tem sido a voz mais influente desse bloco, que assumiu como propósito a defesa do chamado “Sul Global” — nome pelo qual passaram a ser conhecidos os países que, no final do século passado, eram chamados de “Terceiro Mundo”.
Em nome disso, ele renunciou a parte da própria soberania para colocar o Brasil a serviço dos interesses dos fundadores do Brics e de outros países, como o Irã, que ele atraiu para o bloco. A questão com os Estados Unidos, portanto, não se refere à defesa da soberania, mas à escolha das companhias. A pergunta é: será que o Brasil está escolhendo suas companhias com base em seus próprios interesses?
A questão é complexa e exige uma reflexão muito mais ampla do que a que tem sido feita até agora. Para se entender com os Estados Unidos e usufruir de todas as vantagens que pode obter em sua relação com a maior economia do mundo, o Brasil precisaria, em primeiro lugar, rever os termos de sua relação com a China — que vem sendo estimulada nos últimos anos. Valerá a pena fazer isso de uma hora para outra? Claro que não. Nos últimos anos, a China tem sido o maior investidor na infraestrutura brasileira — e as principais obras tocadas no Brasil contam com capital da potência asiática.
O Trem Intercidades, que ligará o Centro de São Paulo a Campinas e a outras localidades, tem dinheiro chinês. O túnel que fará a ligação entre Santos e Guarujá, também. A ponte que ligará Salvador à Ilha de Itaparica, da mesma forma. O aeroporto do Galeão e a linha mais recente do metrô de São Paulo também estão na lista. A relação não para por aí…
A questão, naturalmente, não se resume a esses aspectos. Ela também diz respeito a questões históricas, que estão relacionadas com a presença de mais de 4.500 empresas de capital americano atuando e gerando empregos no Brasil. Inclui as condições que fizeram dos Estados Unidos o maior investidor estrangeiro em território internacional. Como se vê, a questão é complexa e inclui pontos importantes demais para se resolver com um abraço e um aperto de mão. Seja como for, a chance de entendimento não pode ser desperdiçada e o diálogo precisa começar já!
(*) Empresário luso-brasileiro