
Por Nuno Vasconcellos (*)
Todas as críticas feitas à ocupação das mesas diretoras da Câmara e do Senado por parlamentares da oposição, que ganhou destaque entre os episódios desagradáveis da semana passada, são justas e merecidas. Em meio a tudo o que se viu nas duas casas, é até difícil apontar, entre os erros cometidos no episódio, qual terá sido o maior. Falando exclusivamente dos deputados, que se destacaram mais do que os senadores nessa crise lamentável, eles poderiam ter escolhido outra forma, outro lugar e outro momento para protestar contra a prisão domiciliar do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
Não se trata, é bom que se registre, de negar aos deputados da oposição o direito de defender o ex-presidente. O problema não foi o conteúdo, mas a forma do protesto. Na tentativa de deixar claro seu descontentamento com uma decisão tomada pelo Judiciário, ou seja, por outro poder, os deputados agiram contra os interesses do próprio Legislativo. No final, arranharam ainda mais a reputação do Legislativo e, assim, prejudicaram ainda mais o Congresso, que não tem sido visto com os melhores olhos pela sociedade.
Ataque às instituições
Além da reputação da Casa aos olhos dos eleitores, um outro aspecto deve ser considerado. Ao agir como agiram, os parlamentares de oposição acabaram alimentando os adversários que, como era de se esperar, aproveitaram para avançar algumas casas no jogo que se disputa neste momento no ambiente polarizado do Congresso. A bancada governista, como esperado, não mediu palavras para condenar a atitude da oposição. “Ninguém pode parar na força o trabalho legislativo. Isso aqui é mais um ataque às instituições”, disse o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ).
Sinal dos tempos
A posição de Lindbergh neste episódio foi oposta à que ele manifestou em 2017, durante o governo do presidente Michel Temer, quando um grupo de senadoras da esquerda protagonizou um papelão tão ridículo quanto o que foi desempenhado pelos deputados direitistas na semana passada. Na próxima terça-feira (ou seja, depois de amanhã), completam-se oito anos do dia em que Gleisi Hoffmann (PT/PR), Fátima “é golpe” Bezerra (PT/RN), Kátia Abreu (PMDB/TO) e outras de expressão mais acanhada tomaram de assalto a mesa diretora do Senado.
Àquela altura, as aguerridas senadoras queriam impedir, na marra, a votação da Reforma Trabalhista, apresentada pelo governo, que já tinha passado pela Câmara e dependia da aprovação do Senado para entrar em vigor. “No momento em que um grupo de senadoras impede o funcionamento do Congresso, considero que estão praticando ato muito grave contra a instituição”, disse o então senador Paulo Bauer, na época líder do PSDB no Senado, Paulo Bauer (SC), que na época era líder da bancada do PSDB.
Veja bem: Lindbergh, na semana passada, se valeu do mesmo argumento utilizado por Bauer há oito anos para criticar os adversários. Trata-se de uma espécie de repetição da história e, como disse o velho Karl Marx n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, os fatos importantes na história ocorrem duas vezes. “A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. O Congresso Nacional, que em 2017 já era criticado pela falta de rumos em defesa de suas prerrogativas, mergulhou em 2025 naquele que, talvez, seja o momento mais desafiador de sua história. O desafio se traduz numa pergunta: como sair de uma crise em que os deputados e senadores se meteram por seus próprios erros e escolhas?
O Instinto do Avestruz
Diga-se em defesa dos parlamentares que os oposicionistas só se sentiram à vontade para ocupar as mesas porque elas estavam vazias — como, aliás, têm estado na maior parte do tempo da atual legislatura. Sob a responsabilidade do deputado Hugo Motta (Republicanos/PB) e do senador Davi Alcolumbre (União/AP), as presidências das duas casas têm se destacado mais pela omissão do que por suas atitudes nos momentos delicados que o país tem enfrentado.
Passado o ponto mais agudo da crise, o retardatário Motta resolveu mostrar autoridade e fez ao Conselho de Ética da Câmara um pedido de suspensão por seis meses dos mandatos de cinco parlamentares. São eles Marcos Pollon (PL/MS), Zé Trovão (PL/SC), Júlia Zanatta (PL/SC), Marcel van Hattem (Novo/SC) e Camila Jara (PT/MS). Os quatro oposicionistas são acusados de liderar a confusão. Já a petista Camila Jara, de ter buscado a notoriedade que não consegue com suas ações em plenário cometendo uma agressão física covarde contra Nikolas Ferreira (PL/MG). Não, você não leu errado: a esquerdista agrediu o deputado com um safanão covarde. É… foi apenas mais um sinal de que, como dizem os petistas, “o amor venceu.”
É triste, mas é o que temos para o momento. Em tempos difíceis de um passado nem tão remoto assim — como nos instantes decisivos do fim do regime militar — as lideranças do Congresso costumavam ser as primeiras a se apresentar para delimitar o limite da discussão e indicar as soluções para os problemas. Hoje, Motta e Alcolumbre estão diante de situações que, por mais que exijam atitudes firmes e sensatas, são menos desafiadoras do que as enfrentadas, para citar dois adversários históricos, pelo deputado Ulysses Guimarães (MDB/RJ) ou pelo senador Petrônio Portella (PDS/PI), que, mesmo governista, foi um dos arquitetos da redemocratização. Motta e Alcolumbre nunca tiveram a mesma grandeza desses dois. No calor dos debates, ao invés de encarar de frente as situações difíceis, eles apelam para o instinto do avestruz. Enfiam as cabeças na terra e fingem que o problema não lhes diz respeito.
Nos últimos meses, nos momentos em que o país mais precisou de uma ação firme do Legislativo, Motta e Alcolumbre simplesmente preferiram se esquivar. Quer um exemplo? Vamos lá: semanas atrás, a Câmara e o Senado ensaiaram uma demonstração de grandeza, se insurgindo contra o projeto do governo que aumentou o IOF sobre as operações de crédito. Independente das razões que motivaram os parlamentares, a decisão que tomaram foi interpretada como o sinal de que o Legislativo pretendia finalmente pôr um limite na voracidade fiscal do governo.
Proclamado o resultado, o PSOL — o puxadinho de extrema-esquerda do PT, que atua como linha auxiliar do governo — recorreu ao STF para melar o resultado. Diante de uma decisão do Legislativo que deveria ser soberana, o PSOL se agarrou à barra das togas para fazer valer a vontade do governo. E, assim, o ministro Alexandre de Moraes, com uma canetada, passou por cima da decisão da Câmara (onde o aumento do IOF havia sido barrado por 383 contra 98) e do Senado (onde a medida foi aprovada pelo voto simbólico) e disse que o governo poderia cobrar o imposto como queria.
Como os dirigentes do Poder Legislativo reagiram à decisão de Moraes? Não reagiram. Trataram o problema como se a interferência fosse normal. E não moveram uma palha para impedir que o contribuinte arcasse com mais um aumento de tributos. A mesma omissão tem marcado a atuação do Legislativo no contencioso em torno das tarifas de 50% impostas pelo governo dos Estados Unidos aos produtos brasileiros. Sem entrar em detalhe em relação à caravana inócua de senadores que se prontificou a ir a Washington tentar tratar do assunto, semanas atrás, o Congresso, como instituição, tem se mantido imóvel diante do problema.
Silêncio obsequioso
Num cenário confuso como o que o país enfrenta, uma tomada firme de posição por parte de Motta ou de Alcolumbre, caso algum dos dois estivesse à altura do cargo que ocupa, teria sido fundamental. Afinal, entre os três poderes da República, o Legislativo é o mais adequado para promover debates, para deliberar sobre as possíveis soluções de problemas e para definir até que ponto o país está disposto a ceder para chegar a um acordo. Ou, ainda, para estabelecer o ponto em que é necessário fincar o pé e endurecer as negociações.
Mais do que simplesmente se manter em silêncio obsequioso, os chefes das duas casas do Legislativo preferiram permanecer de costas para a cena. Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à sua maneira, se manifestava sobre a questão, o vice-presidente Geraldo Alckmin insistia na busca de uma negociação cada vez mais improvável e o Itamaraty, mais perdido do que um esquimó no deserto do Saara, não tinha a mínima ideia do que fazer para estabelecer o contato que sempre se recusou a manter com o governo americano, Motta e Alcolumbre deram no pé e se mantiveram bem longe de Brasília. Preferiram desfrutar de férias que, a rigor, nem tinham o direito de estar gozando.
Isso mesmo! O recesso parlamentar de meio de ano, que os dois usaram como desculpa para não mostrarem as caras no meio do conflito, foi uma afronta à Constituição. Ele foi marcado pelo “jeitinho” que os políticos sempre dão para acochambrar as situações em seu próprio benefício.
A rigor, Suas Excelências não poderiam se dar férias enquanto não votassem a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2026. É o que determina a lei. Mas, como na hora de trabalhar ninguém é de ferro, Motta e Alcolumbre decidiram simplesmente cancelar as atividades das duas casas legislativas na segunda quinzena de julho e contar como dias trabalhados o período que os parlamentares manteriam distância do Congresso Nacional.
Demonstração de grandeza
Ainda que não se mostrem à altura dos cargos que ocupam, Motta e Alcolumbre parecem feitos sob medida para o atual Legislativo brasileiro — um poder que, por obra das escolhas de seus próprios integrantes, vem se afastando das atribuições reservadas para ele no regime democrático. De algum tempo para cá, as senhoras e os senhores deputados (com honrosas exceções) parecem ter como maior preocupação a execução das emendas parlamentares a que se deram o direito. E, de tanto se preocupar em pôr a mão no dinheiro público, o Legislativo acabou se amofinando naquilo que é a fonte de sua grandeza: o debate de ideias e a elaboração de leis em benefício da sociedade.
Num cenário como o atual, em que a perda de prestígio do Congresso (infelizmente) é evidente e a sociedade parece cada vez mais descrente de seus representantes, a crise aberta pelo contencioso com os Estados Unidos poderia ter sido encarada por Motta e Alcolumbre como uma oportunidade. Eles deveriam ter chamado para si a discussão dos grandes temas. Ao invés disso, os presidentes das duas casas preferiram se encolher e deixar que o Executivo e o Judiciário lidassem sozinhos com o problema.
Não vamos, aqui, entrar em detalhes nem cobrar dos representantes do povo um posicionamento firme diante das sanções do governo Trump nem exigir deles uma opinião em relação à aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes. Não se trata disso. Mas será que alguém já pensou que o Parlamento brasileiro poderia ter se antecipado aos problemas, chamado para si a responsabilidade do debate e evitado, enquanto havia tempo, que a situação chegasse ao ponto que chegou?
Alguém pode até dizer que, sob o clima polarizado que se instalou por lá, o parlamento não seria o fórum mais adequado para lidar com esse assunto neste momento. Afinal, tudo ali tem sido decidido na base do bate-boca, da provocação e até da agressão física — e a troca de pirraças entre os políticos da direita, que não largam a mão do ex-presidente Jair Bolsonaro, e os da esquerda, que apoiam e sempre apoiarão o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, faça chuva ou faça sol, jamais permitiria o entendimento em torno do caminho a seguir. Pois seria justamente aí, em meio à dificuldade de se aparar as arestas, que o Parlamento mostraria sua grandeza diante de um problema que afeta todo o país.
Uma solução oferecida pelo Legislativo, que brotasse da divergência entre grupos que parecem irreconciliáveis, serviria para mostrar ao mundo que, no Brasil, os poderes da República são de fato, como diz a Constituição, “independentes e harmônicos entre si”. Mas, como o Legislativo nada fez e, pelo visto, nada fará, o mundo tem cada vez mais certeza de que, no Brasil, uns mandam mais do que os outros — o que, de certa forma, dá razão àqueles que aplaudem as punições aplicadas ao Brasil, a pretexto do excesso de poder concentrado nas mãos do Supremo Tribunal Federal.
Anistia e Impeachment
A inércia dos presidentes das duas Casas e sua omissão diante de um problema que exige atitude pode até alimentar o desprezo que a sociedade tem demonstrado pelas instituições. Mas não causam surpresa. À frente do Senado, Alcolumbre vem se demonstrando mais apequenado do que seu antecessor, o sancionado Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que, ao longo dos quatro anos que comandou a Casa, sempre baixou o cangote para o Judiciário e o Executivo. Pacheco era um bolsonarista raiz em 2021 e 2022 e passou a fazer o L com convicção nos dois anos seguintes.
Motta, por sua vez, se mostra tão perdido, confuso e deslumbrado no exercício de um cargo que não parece preparado para exercer quanto foi o deputado Severino Cavalcanti — que assumiu a presidência da Câmara em fevereiro de 2005 e resistiu apenas sete meses no posto. Cavalcanti demonstrou desde o primeiro instante que não tinha o menor estofo para presidir a Mesa Diretora. E Motta?
Bem… a maior prova de que a dimensão política do atual presidente não está à altura da importância do cargo foi dada na quarta-feira passada. No calor da crise, a desocupação da mesa da Câmara foi negociada não por ele, mas por seu antecessor Arthur Lira (PP/AL).
Tomara que Motta, numa súbita demonstração de aptidão para o posto, mostre ao país que é capaz de lidar com uma crise como essa. Tomara! Pelo que demonstrou até agora, porém, isso parece uma possibilidade distante. Quanto a Alcolumbre, bem… Seria ingênuo esperar dele algo melhor ou maior do que ele ofereceu até aqui.
Com atitudes que mais parecem as de um despachante do Executivo e do Judiciário do que de um líder do Legislativo, tudo indica que Alcolumbre passará para a história como o presidente do Senado que dedicou o seu mandato a impedir a votação do pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, requerido pela maioria dos senadores. Motta, por sua vez, também não pretende levar a plenário o projeto que prevê anistia aos condenados do dia 8 de janeiro.
Não se trata, aqui, de defender a anistia e muito menos o impeachment. Esses temas são complexos e graves demais para serem utilizados como moedas de troca no calor das emoções políticas! O que se defende é que não se deve negar ao poder que foi eleito para lidar com problemas dessa gravidade, ou seja, o Legislativo, a prerrogativa de decidir a respeito deles.
Por uma série de razões, entre elas a falta de lideranças firmes e eficientes, o país acabou se habituando a tratar de temas graves e sensíveis como anistia e impeachment como rotina do debate político. Nada mais equivocado. Anistia e impeachment, é bom que se diga, jamais podem ser vistos como pautas corriqueiras nem como a solução dos problemas do país.
Pelo contrário. Eles são recursos excepcionais, que só devem ser usados diante do esgotamento de todas as outras possibilidades de solução de problemas gravíssimos. Ou a boia de salvação de que o país dispõe quando se vê diante de anomalias institucionais que não precisariam existir se todos os Poderes funcionassem na forma da lei, sem que um avançasse sobre as atribuições dos outros.
(*) Empresário luso-brasileiro