Dublagem no Brasil: arte reconhecida na tela, ignorada na justiça

Família de ator que dublou Chaves processou o SBT - Foto: Divulgação/Televisa

Por Heloisa Tolipan

Debate sobre o direito moral e legal dos dubladores à autoria de suas vozes em obras audiovisuais vem ganhando força no Brasil. A Lei 12.091/2009 garante esse reconhecimento, mas a aplicação ainda é irregular. O ator César William afirma jamais ter sido reconhecido por sua voz de Deus em ‘Os Dez Mandamentos’ (Record) e teve ações judiciais extintas. No SBT, os herdeiros de Marcelo Gastaldi, voz de Chaves, só conseguiram indenização em 2011. Especialistas afirmam que a dublagem é interpretação e, por lei, deve ser creditada. Mesmo com avanços, o apagamento da voz continua sendo uma falha recorrente no audiovisual brasileiro

Não é raro que, na dramaturgia e na teledramaturgia, apenas as vozes estejam presentes. Desde o início dos anos 1980, o SBT transmite produções importadas da mexicana Televisa, sempre com dublagem em português. Nos bastidores da televisão, esse tipo de conteúdo ficou por muito tempo conhecido como “enlatado” — referência direta às fitas que chegavam ao país literalmente acondicionadas em latas metálicas, prontas para serem dubladas e exibidas. Essa lógica não se restringe aos programas latinos. Os desenhos animados da Disney, por exemplo, ao serem exibidos no Brasil, contaram com a participação de grandes nomes da música brasileira. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Dalva de Oliveira, que dublou todos os números musicais na versão brasileira de Branca de Neve em uma de suas primeiras exibições no país. O que por muitos anos foi encarado como um processo técnico — dar voz a personagens estrangeiros —, passou, com o tempo, a gerar um debate importante: qual é o direito do locutor e do dublador sobre sua própria voz? Ainda hoje, a questão tem gerado discussões, lacunas e, principalmente, processos. Veja três casos que envolvem a Globo, a Record e o SBT.

A VOZ DO DONO E O DONO DA VOZ

Foi apenas em 2007, com a apresentação do Projeto de Lei 821/2007, pelo então deputado Clodovil Hernandes [1937-2009] (PR-SP), que esse tema ganhou corpo no Congresso Nacional. Após a morte do parlamentar em 2009, a proposta foi transformada na Lei Ordinária 12.091/2009, que modificou a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais), passando a assegurar os direitos morais dos dubladores em obras audiovisuais — sobretudo o direito de receber créditos por seu trabalho.

Para se ter uma ideia do atraso nesse reconhecimento, estima-se que apenas em 2011 os dubladores passaram a ser creditados regularmente nos episódios de Chaves, um dos programas mais populares da TV brasileira. Curiosamente, embora os dubladores tenham começado a ser mencionados, os atores mexicanos originais raramente foram creditados nas transmissões do SBT, mesmo quando a emissora adotou — e mantém até hoje — a clássica abertura com a contagem regressiva e os personagens perfilados.

Três episódios distintos, ocorridos em três emissoras diferentes — SBT, Globo e Record — ilustram como esse debate ainda é central no mercado audiovisual: trata-se do direito ao reconhecimento e à autoria da voz. No caso do SBT, a discussão culminou em uma decisão judicial.

Em 2007, os herdeiros de Marcelo Gastaldi Júnior, falecido em 1995 e dublador de Chaves, entraram na Justiça contra a emissora. A ação afirmava que “o SBT exibe os episódios que já estavam com a voz do dublador. A família alega que tudo está sendo feito sem autorização e sem pagamento dos direitos autorais. Ainda foi produzido um DVD com alguns episódios do programa, também sem pagamento dos direitos”.

A defesa do SBT sustentou que adquiriu os direitos do seriado após a morte de Gastaldi e que, por isso, ele não poderia ser considerado um artista intérprete. Alegou também que, nesse caso, o dublador não teria direito nem aos direitos conexos nem aos autorais. No entanto, em 2011, a Justiça determinou que o SBT deveria indenizar os herdeiros do dublador por uso não autorizado da voz.

Bastidores de “Chaves”. Série demorou mais de vinte anos para creditar dubladores – Foto: Arquivo/Site HT

O advogado Victor Drummond, especialista em direito autoral e propriedade intelectual, e diretor da Interartis — associação de gestão coletiva de atores do audiovisual —, explica o fundamento legal da decisão: “Esse direito não pode ser objeto de cessão ou transferência contratual. A lei diz que são direitos morais do autor — em seu artigo 24 — como direito de paternidade, nomeação, autoria. E o artigo 27 vai dizer que são inalienáveis e irrenunciáveis esses direitos. Então, mesmo que o dublador quisesse, numa cláusula que dissesse que ele precisa ceder o direito de nomeação à autoria, seria nula de plano, portanto, não teria nenhuma validade”.

Drummond reforça ainda que o crédito ao dublador deveria ser uma garantia indiscutível, já prevista pela legislação: “O crédito aos dubladores — ainda é uma questão, mas não deveria ser uma questão para o mercado, do ponto de vista da lei, porque o direito de nomeação da autoria também é válido para o intérprete. O dublador é o intérprete em voz. Portanto, não há nenhuma questão aí que impeça que ele seja mencionado — e não deveria haver nenhum impedimento”.

Frank era o robô de “Tempos Modernos”, dublado por Márcio Seixas. Um fracasso às 19h – Foto: Reprodução/TV Globo

Em meio a disputas recorrentes por reconhecimento e autoria no universo da dublagem e da interpretação vocal, há raros casos em que a questão parece ter sido tratada com o devido cuidado. Um exemplo frequentemente citado como positivo é o da novela Tempos Modernos, exibida pela TV Globo em 2010. Nessa trama, o personagem Frank — um supercomputador que interagia com os protagonistas — era interpretado exclusivamente por meio de voz. Coube ao dublador Márcio Seixas dar vida (e voz) ao personagem que não possuía forma física. Diferentemente de outros trabalhos do gênero, Seixas foi creditado com destaque ao longo de toda a exibição da novela. Seu nome constava na abertura oficial, na página do programa no site da emissora e no acervo institucional do Memória Globo.

Entretanto, essa conduta não se estende a todos os produtos audiovisuais exibidos pela emissora. Em diversas ocasiões, sobretudo nas sessões de filmes exibidos na programação vespertina da TV aberta — como a Sessão da Tarde —, os dubladores continuam invisíveis ao público. Seus nomes não aparecem nos créditos finais, mesmo quando suas vozes são parte essencial da experiência narrativa.

No outro extremo do espectro, há casos emblemáticos de ausência de reconhecimento. Um dos mais delicados envolve o dublador e ator César William, que por anos deu voz a Deus em diversas produções bíblicas da Record, incluindo a novela Os Dez Mandamentos, considerada um dos maiores sucessos da história recente da emissora. Segundo César, apesar de sua participação central, jamais foi creditado formalmente pelo trabalho realizado. “Incrivelmente, eu não recebi uma menção em nenhuma dessas obras. Por muito tempo, pensavam que a minha voz era a do mesmo dublador que fez o Mufasa, do Rei Leão“, conta César — em referência ao ator Paulo Flores, responsável pela dublagem do personagem da Disney em 1994.

O ator explica que chegou a recorrer à Justiça para reivindicar seus direitos, mas teve a ação extinta. “Em Os Dez Mandamentos, eles fizeram um negócio lindo em razão do sucesso”, relata César. “Deram crédito de agradecimento a toda a equipe do projeto — camareira, eletricista, motorista, enfim, para toda a equipe. A mim, não creditaram. Entrei, então, com processos, que foram extintos. Uma das juízas pegou a obra e falou que não tinha utilidade aquela ação”. Segundo ele, a única produção veiculada pela Record em que seu nome foi creditado foi a série documental Heróis Eternos.

“É uma série documental, não é nem dramática. A única dramatização é exatamente a minha parte. Mas o curioso é que essa foi a única obra feita para TV em que recebo crédito. E não por causa da Record, mas sim por causa da produtora, que foi respeitosa” – César William

Bárbara França em “Os Dez Mandamentos” – Foto: Munir Chatak/RecordTV

Para o advogado Victor Drummond, o caso de César William envolve diretamente o direito de paternidade sobre a obra, garantido pela legislação brasileira: “Aos intérpretes cabem os direitos morais de integridade e paternidade da obra. Paternidade é o direito que ele tem de alegar que ele é o autor da obra. Nesse caso, ele é o intérprete. Portanto, ele está nos termos do artigo 92. Ele vai lá e diz: ‘Olha, eu sou o intérprete. Eu sou o cara que fez a voz de Deus aqui’. E quando não há nomeação da autoria, ele pode exigir que essa nomeação seja feita porque ele tem o direito da paternidade, e ele está vinculado com a nomeação da autoria.”

Drummond destaca ainda que o argumento de que se trata apenas de uma locução não se sustenta legalmente: “Entendo que o que o César faz é uma interpretação. Pode ser que a Record entenda que não, que é uma locução ou uma dublagem. Mas a fala dele é interpretativa. Todo mundo sabe que ele não é Deus. Então, se César não é Deus e está fazendo a voz de Deus, ele está interpretando um personagem. A questão estética não entra na discussão, e o direito autoral não liga para isso. E Deus, nas novelas bíblicas, não é um personagem menor. Me parece que é um personagem bastante significativo. Então, a voz do César é uma interpretação.”

Interpretar em voz pode ser criando algo, pode ser lendo algo, pode ser dublando. Não importa se ele está falando algo em cima da voz de alguém, porque alguém já falava no original. O trabalho dele é a interpretação em voz de toda forma. Então ele está protegido da mesma forma – Victor Drummond

Pérola Faria como Deborah em “Os Dez Mandamentos” – Foto: Reprodução

A discussão em torno do reconhecimento dos dubladores como intérpretes legítimos de obras audiovisuais continua aberta e revela uma contradição histórica do setor: enquanto a voz é essencial para a compreensão e o envolvimento do público, seus criadores seguem, muitas vezes, invisíveis. Casos como o de Márcio Seixas mostram que é possível caminhar com justiça. Já os de César William reforçam a urgência de consolidar direitos que são, antes de tudo, morais e legais.

Procuradas, as emissoras não responderam aos nossos contatos até o fechamento desta reportagem e o espaço segue aberto para atualização.

Fonte: https://heloisatolipan.com.br/tv/dubladores-vao-a-justica-amparados-pela-lei-de-clodovil-e-desafiam-record-e-sbt-por-direito-conexo-e-de-credito/

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