
Por Juscelino Taketomi
Um ato de terror jamais investigado marcou para sempre a vida de Dona Maria, hoje com quase 80 anos. Naquela fatídica manhã de 1982, a floresta parecia ainda mais silenciosa, como se soubesse do que estava por vir.
Sentada na varanda de sua casa simples, à beira do que outrora fora um sonho de asfalto e progresso — a BR-319 —, Dona Maria revivia um pedaço sombrio da história enquanto a equipe da Associação dos Amigos e Defensores da BR-319, presidida e liderada por André Marsílio, ajustava a câmera para gravar seu depoimento.
Seu João, companheiro de vida e memórias, arrumava a velha cadeira de madeira ao lado dela. O repórter, com voz respeitosa, perguntou: — A senhora se lembra daquele dia?

Dona Maria fechou os olhos, mergulhando no passado como quem revisita um álbum de lembranças indesejadas. — Como esquecer? Era 1982. Decidiram que a estrada não devia mais existir. Trouxeram dinamite e explodiram o que puderam. Tudo virou fumaça e poeira. Ficamos olhando, impotentes, ao tempo em que tentavam apagar nossa história — disse, segurando o terço que carregava no bolso como um símbolo de resistência.
Seu João, 74 anos na época, com o chapéu gasto de tantas jornadas sob o sol amazônico, acrescentou com um tom de amargura: — Diziam que era pra proteger a floresta. Mas sabíamos que tinha coisa por trás. O que ficou foi abandono. Antes, essa estrada era cheia de vida, caminhões levando sonhos, mercadorias. Hoje, é só silêncio e buracos.
A câmera capturava as imagens de trechos da BR-319 onde o asfalto, feito com uma técnica de solo-cimento, ainda resistia teimosamente. Mas o que mais impressionava eram os relatos de sobreviventes como Dona Maria e Seu João, que permaneceram no local quando tudo desmoronava ao seu redor.
“Chegamos aqui em 1980, vindos do Paraná. A estrada era nova, um convite para recomeçar a vida. Fizemos nossa casa, plantamos mandioca, criamos nossos filhos. Hoje, a estrada não nos leva a lugar nenhum, mas isso aqui é nossa vida. Ficamos porque somos teimosos”, continuou Dona Maria, o olhar firme, mas carregado de saudade.
Houve um silêncio. Daqueles que só os que já perderam algo profundo conseguem sustentar. A floresta, cúmplice, parecia partilhar daquele momento. Seu João quebrou o silêncio, o olhar fixo no chão: — Vi quando colocaram a dinamite. Diziam que era pelo bem da Amazônia, mas só nos isolaram. Quem pôde, foi embora. Ficamos nós. Porque a terra é teimosa, e nós também somos.
Próximo dali, a câmera captava um trecho crítico da estrada. Um caminhão parado tinha o pneu consertado em uma borracharia improvisada. O borracheiro, nascido em 1975 e filho daquela terra, era um herdeiro da BR-319.
“Não cobro pelo serviço. Só quero que a estrada volte. Essa terra é minha, e quero ver gente passando por aqui de novo”, disse ele, apertando os parafusos de um pneu com determinação.
O vídeo, produzido em 2021, encerrou-se com as palavras firmes do presidente da Associação, André Marsílio, traduzindo a indignação de todo um povo: “A BR-319 não é só uma estrada. É a ligação de um povo, a promessa de um futuro. Não podemos permitir que a história dela termine assim.”
Na varanda, Dona Maria ajeitou o terço e olhou para o marido e para a câmera. Seus olhos brilhavam com uma fé quase palpável. “Um dia, a estrada volta. Deus não dorme. Ele vê a gente. Quando isso acontecer, quero ver meus netos andando por aqui, como um dia sonhamos.”
A reportagem da Associação, disponível no YouTube, é um capítulo triste da história da BR-319: uma estrada perdida, mas viva nas memórias de quem ainda luta por ela. Mais de 40 anos depois, André Marsílio relembra o episódio com a mesma revolta:
“A explosão da BR-319 foi um crime de lesa-pátria, e não podemos ignorar isso. Temos muitas testemunhas oculares desse episódio trágico que condenou o Amazonas ao isolamento.”
Ele conclui, com a força de quem acredita na justiça histórica: “Discutir a repavimentação da BR-319 agora em 2024 sem resgatar esse fato é negligenciar o passado e comprometer o futuro. A estrada é nossa e precisa ser devolvida ao povo brasileiro.”











