
Por Juscelino Taketomi
Pois é, no dia 24 de outubro de 2025 cheguei aos 70 anos. Não sei como, nem quando, nem por que motivo a fila andou tão depressa — mas cheguei. Uns chegam de jatinho, outros de bicicleta. Eu vim mesmo foi de voadeira, enfrentando as marés do tempo, desviando das pedras da vida e das ressacas da política, essa velha amante que há décadas me acompanha pelas redações, plenário e bastidores da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas.
Lá pelos anos 70, quando o Brasil andava com o som do AI-5 no ouvido e o medo de falar mais alto que o Hino Nacional, eu flertava com os movimentos de resistência, achando que ia mudar o mundo no embalo de Chico Buarque, John Lennon, Bob Dylan e Geraldo Vandré. Depois descobri que o mundo é mais teimoso que general com raiva de comunista e mais preguiçoso que servidor público em véspera de feriado.
Aos 16 anos, li O Livro dos Espíritos e achei que estava entrando em contato com o Além. Entrei, mas o Além me despachou de volta, dizendo que eu ainda tinha muitos boletos a pagar. Passei então por várias religiões, feito turista espiritual, e descobri que muitas funcionam como repartição pública do Céu, com senha, carimbo e taxa celestial, sob a chefia dos arcontes de Javé.
Foi aí que aprendi a desconfiar das verdades absolutas, principalmente as que vêm com manual de instruções e promessa de eternidade em letras garrafais.
Entre uma crise de consciência e outra, fui bebendo nas mesas de bar de Manaus, Itacoatiara, Coari, Parintins, Manacapuru e onde mais a vida me serviu uma cadeira e um copo. Nessas mesas, discuti política, metafísica e futebol, e o curioso é que, no dia seguinte, ninguém lembrava das conclusões. Filosofia etílica é assim: evapora junto com o álcool.
Mas o tempo, esse senhor paciente e meio debochado, me trouxe outra sabedoria: o verdadeiro “eu superior” não se encontra em livros esotéricos, mas em reler coisas como O Sermão da Montanha, do estonteante Jesus, e O Guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa.
Do Sermão aprendi que “os mansos herdarão a Terra” — e talvez por isso os bravos vivam sempre de mudança. Descobri também que ser pobre de espírito não é burrice, mas humildade diante do mistério.
De Fernando Pessoa, na voz serena de Alberto Caeiro, aprendi que “o essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar”, e também que “pensar é estar doente dos olhos”. Caeiro me ensinou que o rio não se explica a ninguém, que as flores não precisam de sentido para florescer e que a vida, quando olhada com calma, é tranquila, linda e até engraçada, se a gente não complicar.
Entre o Sermão e o Guardador, percebi que a vida é mistura de bem-aventurança com rebanho disperso. Às vezes a gente é pastor; às vezes, ovelha desgarrada. Mas o importante é continuar olhando o horizonte, sem perder o humor nem a fé nas coisas boas.
Não me tornei santo, ora que merda, nem o pau oco quis me canonizar. O pau oco disse que já estava de saco cheio de candidatos na sua fila de ocasião. Mas sigo tentando ser gente, o que já é tarefa digna de beatificação. Convenhamos, ora, ora.
Chegar aos 70 é descobrir que a vida não é corrida de cavalo doido, mas poema longo, cheio de revisões, cortes e vírgulas fora do lugar. É como diria Caeiro: “Há metafísica bastante em não pensar em nada”. E, se ele tivesse conhecido Manaus, talvez dissesse: “Há filosofia bastante num tucumã bem temperado e num chope gelado ao entardecer”.
Se for para deixar uma moral de história, que seja esta: a poesia salva, o riso cura e o bar da esquina ainda é um bom lugar para conversar com Deus, mesmo que Ele esteja ocupado atendendo a fila dos arrependidos de última hora, sejam eles vascaínos, flamenguistas, corintianos, palmeirenses, bolsonaristas, lulistas e outros contumazes devedores cármicos.
Brindemos, pois, ao milagre de estar vivo. E que venham os próximos capítulos, porque a crônica da vida, quando bem escrita, não precisa de final feliz. Basta ser verdadeira, diferente da “verdade absoluta”, que é como o peixe que, numa bobeira do pescador, escapa da rede.
E se o peixe escapar, paciência, a gente pede outro prato, mais uma cerveja e continua a conversa.
Afinal, aos 70 anos aprendi com Caeiro que “pensar é não compreender a vida”, e com Jesus que “basta a cada dia o seu próprio mal”.
No fundo, o segredo é esse: viver, rir e não discutir com quem insiste em explicar o mistério, ainda mais se o mistério estiver pagando a próxima rodada.
E, apesar dos pesares, continuo comendo jaraqui, tambaqui e sardinha, além de tucumã e açaí. O açaí, agora misturado a papelão e sem-vergonhice; o tucumã, iguaria mais difícil que milagre confirmado. E o X-Caboquinho? Esse virou artigo de luxo, custando os olhos da cara. Nem Jesus dá jeito e tampouco Satanás atura.











